Como resetar o tabuleiro segundo o padrão Marvel.
Esclarecia o movimento punk: a “sociedade ocidental” do último século consiste de uma ninhada de roedores vivendo do lixo produzido pela indústria de consumo. São toneladas de celulares, carros, pneus, sacos de lixo, roupas, CDs, garrafas, gibis, televisores, computadores e cotonetes jogados fora. Se fossem empilhados, levariam o homem à Marte sem ter que usar foguete, restando à mecânica das órbitas unir o ponto A ao B.
Em que pesem os mil alaridos furibundos contra a indústria e as forças de mercado, fato é que a produção de bens culturais, filmes como Vingadores ou quadrinhos do Batman, têm lá seus resultados legais. São obras criativas, sedutoras. Do contrário, você não estaria lendo estas linhas, vez que é disso que se trata este quintal digital, o blog dos Quadrinheiros.
E dentre a variedade de macetes concebidos pela indústria cultural, um dos mais eficazes são aquelas cenas pós-crédito que acompanham os filmes da Marvel.
Saltando de um capricho autoral com sabor de “fan service” lá em 2008, ao introduzir Nick Fury no final de Homem de Ferro, uma cena adicional ao final dos créditos passou a ser regra em cada um dos 23 filmes que o Marvel Studios lançou até Vingadores Ultimato em 2019. Por ser o capítulo final de um longo ciclo, o filme não trouxe qualquer cena pós-crédito, encerrando assim aquele arco narrativo.
Tamanha é a complexidade da trama que foi costurada nestes 11 anos de filmes, coube à Sony Pictures, em produção associada com o Marvel Studios, fazer não apenas uma cena, mas um filme inteiro “pós-crédito”. O resultado é Homem-Aranha: Longe de Casa, dirigido por Jon Watts. Sem dar nenhum spoiler, o filme deixa claro do primeiro ao último minuto que se trata de um mapeamento da situação pós-Vingadores: Ultimato, um “reset” de peças num jogo de xadrez. O filme/epílogo deixa claro: é hora de recomeçar.
O termo epílogo, nativo do teatro, significa “em adição sobre”, um acessório importante sobre o que já apresentado. Parente mais pobre do prólogo, o epílogo, ou posfácio, ora pode arrematar alguma ponta solta da história, ora re-emoldura tudo que foi dito. Em determinados casos, pode até inverter o significado original da narrativa. Exemplos de cada um não faltam.
Star Wars é revolucionário por n razões. Uma delas porque o primeiro filme da saga, lançado em 1977, era o Episódio IV – Uma Nova Esperança. Ou seja, ensinava ao espectador que aquela história continha um prólogo, capítulos que ele só conheceria a partir de 1999 com o lançamento de Episódio I – A Ameaça Fantasma. Apenas em dezembro de 2019, com o lançamento de Episódio IX – A Ascensão Skywalker é que o ciclo será encerrado – e só a Força sabe se restará epílogo a ser narrado depois.
Tanto o filme quanto o livro O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei trazem longos epílogos. A rigor, a saga do anel se encerra no momento em que Golum cai nas chamas da Montanha da Perdição, quando Aragorn, os cavaleiros de Rohan, Gimli e Legolas sobrevivem ao último assalto contra Sauron em Barad Dur. Ponto. Não há acréscimos narrativos naquela história, apenas desdobramentos que encerram pontas soltas. A coroação de Aragorn, o retorno de Frodo ao Condado, a expulsão de Saruman, a punição de Gríma Língua de Cobra.
Já as continuações Matrix Reloaded (2003) e Matrix Revolutions (2003), dois filmes epílogos, não apenas fecham ciclos abertos em Matrix, mas redefinem por completo sentido da história original. A função de Neo, sobre quem era o Escolhido, o destino da humanidade e as razões das escolhas que fizeram foram desconstruídas e redirecionadas. Era difícil enxergar naqueles anos, mas foram opções audazes para uma franquia com potencial multimilionário. E até hoje é controversa entre os fãs.
Quase uma metalinguagem, a última cena pós-crédito de Homem-Aranha: Longe de Casa é o primeiro movimento neste tabuleiro que se apresenta no universo cinematográfico da Marvel. Assim como ocorreu em 2008 com Homem de Ferro, cada um que foi ao cinema assistir Homem-Aranha levou a promessa de outras histórias, mais vibrantes, mais complexas, com mais heróis. Coisa de traficante talentoso.
Revolucionária como a própria ascensão do Marvel Studios, a cena pós-crédito tem enorme potencial. Um deles é a possibilidade de ser objeto de estudo para quem quer que busque compreender um fenômeno, o sucesso heroico na indústria cultural das últimas décadas. Fica aqui um primeiro passo, assinalar o conceito, o epílogo encadeador de novas histórias.
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