A San Diego Comic-Con 2019 e o futuro do passado

Talvez nossa visão de futuro seja menos ambiciosa hoje do que já foi no passado.

Objeto de interesse, investimento financeiro e muito quebra-pau, Educação é um dos campos mais vulneráveis a tecnologias, inovações, soluções mágicas e picaretisses que nosso nem sempre sábio senso comum elege como medida certa para nos tirar do buraco.

Bem sabe todo professor que luta para lembrar o nome de cada aluno, Educação é um pára-raio de tendências. Do lado de fora da escola, como selo de qualidade, basta uma referência obscura de sucesso na Finlândia, dita em nota de rodapé ou em voz baixa entre duas frases que remetem ao futuro brilhante que a nação merece ocupar.

E uma das ideias mais frequentes é a velha defesa da “educação do século XXI”, das “competências do século XXI”, das “tendências do século XXI”, aquela instância do futuro que se instalou no fundo da imaginação de uma criança que cresceu, vestiu terno, gravata e tem casa quase quitada, que por sua vez nunca foi bem aquela que os Jetsons moravam.

Ainda um ideal pra muita gente

Digamos assim, cada nova geração desde meados do século XIX adicionou uma nova demão de ambição numa casa fundada por Júlio Verne, H.G. Wells e Edgar Rice Burroughs. Lugar que virou mansão graças a gente como Arthur C. Clarke, Fritz Lang, Winsor McCay, Hal Foster e Alex Raymond, Hergé. Lugar que se tornou um império graças a artistas como Carl Barks, Will Eisner, Jerry Siegel, Joe Schuster, Bob Kane, Bill Finger, Bill Everett, Jack Kirby, Stan Lee e centenas de outros.

E os futuros que eles imaginaram, fosse uma utopia além do delírio de Raymond, ou uma distopia obliterante como descrita por Orwell, cruzavam limites que a ciência e o conhecimento, mesmo hoje, não têm condições de alcançar. Mas desde que eles publicaram suas obras, suspeita-se, algo estranho aconteceu. Soluço mental que sufocamos sem pensar, talvez nossa concepção de futuro seja menos ambiciosa do que já foi antes.

Cerca de 100 anos atrás, pensando como era o presente, o futuro parecia mais ousado. Imaginava-se metrópoles que fluíam sob o mar, sobre a terra e no céu, como desenhava Jean-Marc Côté.

Mas as referências ao futuro que foram mapeadas nos últimos cem anos parecem não ter mudado muito. Os conceitos, tendências e aspirações que eram provocadas pela ficção deram lugar ao alinhamento de ideias já existentes ou são rejeitados em nome de uma vaga afeição à tradição.

Nesse sentido chama muito a atenção que três dos principais destaques da San Diego Comic-Con 2019 (até o momento que este post é escrito) sejam frutos da mais gritante nostalgia: Top Gun: Maverick, Exterminador do Futuro: Destino Sombrio e Picard. Se você não viu, olha os trailers:

Em termos de Educação, um “paleofuturo”, que defende uma “educação para o século XXI”, ou seja, quase um retrocesso, não é lá grande surpresa. É um discurso simples de agenciar diferentes interesses e, quem sabe, até melhorar alguma coisa.

Mas pra quem, assim como eu, tem fé na trindade de Kal, Diana e Bruce, na remissão de Vader e na ressurreição da Fênix, as tendências apresentadas pela Comic-Con têm sabor agridoce. Afinal é na ficção, nos quadrinhos, no cinema e televisão em que a criatividade e o futuro encontram seu solo mais fértil. São as referências ficcionais que alimentam a vontade de buscar em outro lugar aquilo que a realidade presente é incapaz de oferecer. E por alguma razão a San Diego Comic-Con 2019 teve um ar de congresso de educadores apresentando as “maiores tendências para o futuro”.

Claro, como todo nerd de alta quilometragem sabe, não há pudor em pagar ingresso mesmo naqueles quadrinhos que que você sabe que não vai gostar, naqueles filmes que você não é público-alvo. Mas esse é o fardo do fã, que reconhece os ciclos, as crises e rebirths, que distingue nos padrões e inconstâncias da “novidade” a essência do que é a identidade de um tempo, de uma cultura e mentalidade. Quem sabe isso o ajuda até a imaginar um futuro diferente.

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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2 respostas para A San Diego Comic-Con 2019 e o futuro do passado

  1. yvycomics disse:

    Boa essa reflexão, o que anda limitando nossa imaginação?

    • Velho Quadrinheiro disse:

      Então, entre as hipóteses tem a razão óbvia e objetiva, que é o mercado.

      Do ponto de vista do investimento das produtoras, franquias como Exterminador e Star Trek já tem público cativo e o retorno financeiro é garantido, mesmo que a qualidade do produto seja estapafúrdio. Pessoalmente, tendo a achar que o capital da “indústria do entretenimento” está entre os mais conservadores do mundo. Ou seja, apenas investimentos de baixo risco e no máximo de médio prazo. Tem quem reconheça na Marvel Studios uma exceção, mais arrojada nos filmes de heróis pouco conhecidos do público, portanto mais inovadora. Bobagem. Cada personagem já tem uma base de fãs a pelo menos 30 anos. O que a Fox e a Sony parecem não ter aprendido, e a Marvel usou como trampolim de sucesso, é justamente a fidelidade ao material original dos quadrinhos.

      Mas Top Gun é um caso mais interessante. O 1o filme, lançado em 1986, provocou um dos maiores índices de alistamentos na história das forças armadas americanas. Serviu como propaganda, pura e simples. Mas ainda era tempo de Guerra Fria e a sustentação do aparato militar era um setor atraente do ponto de vista das subjetividades. O lançamento de uma continuação, hoje, sugere várias hipóteses: uma é uma certa nostalgia do “militarismo” dos anos 80, marca da Era Reagan; associado a isso e mais provocante, é um certo inconformismo cultural americano derivado do fim da Guerra Fria. Sem um antagonista claro, qual é a identidade de um homem, um povo, uma nação? No trailer, o almirante Ed Harris diz com todas as letras: “o seu tipo está fadado a desaparecer.”, ao que Tom Cruise responde: “Talvez, mas não hoje.”

      Claro, sem esquecer que a maioria daqueles que produzem quadrinhos, filmes e programas de televisão de ficção científica todos nasceram no século XX e carregam, talvez de forma involuntária, o estigma de um futurismo do século XXI que aprenderam quando eram crianças.

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