A minissérie em 12 edições que revisita toda a história do Caçador de Marte e aprofunda os conflitos do personagem.
Seja pela proximidade de seu planeta de origem, seja pelos poderes muito parecidos com os do Superman, ou a opção por assumir a identidade de um detetive, o Caçador de Marte (antigamente chamado por essas bandas de Ajax, O Marciano) é um dos personagens do segundo escalão da DC Comics mais queridos do público.
Ao longo das muitas mudanças editoriais, diferentes linhas temporais, crises e renascimentos, o herói ficou “sumido” por várias décadas (se somarmos todos os cancelamentos ao longo dos quase 65 anos de existência). Agora a DC lança uma minissérie em 12 edições que reorganiza os elementos introduzidos por diferentes roteiristas ao longo dessa história com roteiro de Steve Orlando (de LJA e Supergirl) e arte de Ridley Rossmo (The Hellblazer).
Spoilers sobre a minissérie ao longo do texto.
A história começa com uma cena de crime investigada pelo detetive John Jones e sua parceira Diane Meade. Os poderes mentais do marciano ajudam com as evidências do crime, mas por algum motivo ele se descontrola e então somos apresentados ao seu passado. Esse é um dos aspectos mais fortes da história – a vida de J’onn J’onzz em Marte. É muito rica a construção do cenário, das interações entre os personagens (sua esposa e filha, o submundo, a política), as regras sociais, o sexo, a lei, o racismo, pelo olhar de seres que podem mudar de forma e que se comunicam telepaticamente.
Orlando nos mostra um mundo aparentemente feliz, onde as pessoas são abertas umas com as outras. A comunicação telepática é a característica que leva a essa transparência (já que elas não escondem nenhum pensamento uma das outras). Mas uma doença mortal assombra os marcianos, uma praga transmitida pelo pensamento que faz com que os telepatas se consumam em chamas. Desde o começo o policial J’onzz esconde da sua família uma parte de sua vida. Esse segredo é uma forma de corrupção, uma traição ao valor mais essencial da cultura marciana. Mas que valor é esse?
Quando chegam a um determinado ciclo, os marcianos adolescentes devem escolher uma forma social. Como eles podem mudar de forma sempre que quiserem, esse ritual introduz o marciano à vida adulta. É uma escolha que o indivíduo terá que carregar para sempre. Mais tarde os casais que vão formar as novas gerações de marcianos se unem numa simbiose física e mental, compartilhando todos os seus pensamentos. Entre a individualidade e a comunhão radical o valor que guia uma sociedade com essas características é a honestidade.
No momento em que o Caçador de Marte é abruptamente arrancado de seu planeta natal em meio à a morte da sua esposa e filha e de toda a população marciana, vítimas da praga, o personagem sente que está pagando o preço por seus erros.
Na versão original de 1955 escrita por Joe Samachson com arte de Joe Certa, o Caçador de Marte aparece na Terra teletransportado para o laboratório do Dr. Saul Erdel. Em mudanças posteriores esse deslocamento não foi só no espaço, mas também no tempo. Na versão de Steve Orlando o planeta Marte do personagem coexiste com uma Terra primitiva de tribos humanas nômades. J’onzz é lançado no futuro, num tempo onde a vida em seu planeta não existe mais. Na Terra ele toma a identidade de um detetive morto (John Jones) para honrar sua vida, como é o costume marciano. Num mundo estranho, ele esconde sua aparência, seus poderes, sua origem. Finge ser o que não é, exatamente como fazia em Marte. Em seu planeta natal ele escolheu fazer isso e perdeu tudo. Em nosso planeta ele não vê outra opção a não ser fazer o mesmo. Mas a sensação de que essa vida oculta é uma corrupção continua ali.
Em uma entrevista para o site Polygon, Steve Orlando fala de sua herança judaica e sua bissexualidade como inspirações para o conflito do personagem. A sensação de não pertencimento, de achar que não pode falar a verdade, a racionalização de que essa vida dupla é uma forma de proteger aqueles que amamos da frustração e do sofrimento (de não correspondermos às expectativas que eles tem sobre nós), tudo isso são caminhos que levam à doença mental. É uma forma de corrupção contra nossa própria identidade.
A minissérie é um estudo sobre o caminho que leva um personagem quebrado pelas mentiras à redenção. É a boa e velha Jornada do Herói, mas que começa com um tipo de sacrifício e leva a outro. São dois entendimentos diferentes de sacrifício – um que anula o indivíduo, motivada pelo medo, e outra que só acontece quando o herói se coloca por inteiro, sem medo do julgamento, motivado pelo senso de responsabilidade. Uma das melhores coisas que a DC publica atualmente.