Uma resposta às vagas inevitabilidades da vida.
Imagine o seguinte: você tem exatas 24 horas de vida. Nasce às seis da manhã, chega ao fim da adolescência por volta das 10 horas, casaria e teria filhos pela hora do almoço, atinge o equivalente aos 40 ou 50 anos às 18 horas, e dali em diante tem menos de 11 horas para viver seus últimos anos, cuidar dos pais, brincar com os netos, se aposentar, achar um lugar legal pra passar os últimos momentos.
Nestes termos, a humanidade existiria há cerca de 2400 anos. Pois do ponto de vista da História, do surgimento da civilização, da escrita, passando pelo Império Romano, Cruzadas, descoberta do Brasil e chegada à Lua, é isso que sua experiência de vida representa: um suspiro de aproximadamente 24 horas.
Convenhamos, é pouco tempo para ser tudo que gostaríamos. Pouco para conhecer o mundo. Pouco para conhecer uma só pessoa, menos ainda para se conhecer várias. Pouco tempo para errar, quase nada para tomar decisões certas. Pouco tempo para descobrir limites, usar chapéus, pochetes, aprender alemão. Pouco tempo para virar astronauta ou pipoqueiro, para tocar um instrumento musical, se exercitar, dormir, acordar. Quase não dá tempo para entender onde se vive, o tamanho da galáxia, do universo. Dependendo do lugar, não é tempo suficiente para experimentar as opções de um cardápio de sorveteria. E além de tudo, ainda é preciso trabalhar, o que toma muito tempo.
Tal como eu, se continuar pensando assim, um ataque de ansiedade te apossou duas linhas atrás.
Mas atenta à maré do tempo, acossada pela inevitabilidade desse destino amargo, eis que a humanidade plantou sementes para nos tornar seres melhores e não um bando de cínicos. Há graça. Há alívio. Mensagens para dar sentido àquilo que parecia sem solução. Se nossa vida é curta demais para garantir as experiências indispensáveis para tornar o mundo melhor, a vacina é a ficção. Doses elefantinas de ficção. Nuvens, cardumes, frotas, manadas, alcateias e pencas de ficção.
Ora, e por que a ficção nos faria melhor?
Porque a ficção, seja ela cinema, teatro, literatura ou gibi, amplia nossa capacidade de empatia.
“Hein?”, diz você enquanto lê no metrô ou a minutos da próxima descarga.
Mas é verdade. Olha só.
Conforme define a Dra. Augusta Gaspar no artigo Neurobiologia E Psicologia Da Empatia: Pontos De Partida Para A Investigação E Intervenção Da Promoção Da Empatia:
[A empatia] é um constructo dimensional […] As principais dimensões traduzem dois processos – o de ser afetado emocionalmente e o de ser capaz de entender as emoções dos outros. Ao primeiro chamamos de Empatia Emocional, que consiste na experiência vicariante, com ativação emocional, involuntária e que pode envolver muitas reações miméticas e respostas fisiológicas automáticas que espelham a experiência emocional do outro, mas em que o indivíduo conserva a noção de si mesmo como entidade distinta desse outro (Eisenberg, 2000). Ao segundo chamamos Empatia Cognitiva, em que a compreensão do que se passa com o outro, pode ocorrer na presença, mas também na ausência da empatia emocional (Blair 2005; Smith 2006), requerendo fundamentalmente ter uma Teoria da Mente – o conceito de “Theory of Mind”, desenvolvido por Premack e Woodruff (1978), que traduz a capacidade de mentalizar, ou seja, de atribuir estados mentais a si mesmo e aos outros (Decety e Moriguchi, 2007; Blair, 2005) e que permite ao indivíduo descodificar o comportamento do outro, perceber a sua perspetiva e prever a sua conduta). Desta relativa independência resulta que a Empatia cognitiva pode ser elevada em indivíduos psicopatas, caracterizados por baixa ou ausente empatia emocional […] (GASPAR, 2016).
Ou seja, por um lado, empatia significa ser capaz de se colocar na pele de outra pessoa, por outro, ser capaz de interpretar o que o outro sente. A pesquisadora aponta que ao longo da vida alguém pode até aprender a empatia cognitiva, mas a empatia emocional está condicionada a fatores genéticos e ambientais diversos, em especial aqueles fomentados pela família. Assim,
[…] a empatia ter-se-á desenvolvido ao longo da evolução humana e da de outras espécies como um mecanismo motivacional capaz de gerar atos altruístas dirigidos a outros em grande carência ou em sofrimento físico ou psicológico; terá tido origem na relação mãe-bebé, gerando inicialmente estas condutas nas mães mas sendo continuamente selecionado ao longo de gerações por aumentar a fitness (aptidão em sentido evolutivo) de filhos de mães mais empáticas, por estas serem mais competentes a proteger a sua prole. O traço foi assim sendo legado. […] A generalização deste traço na população poderá explicar não só a sua extensão para lá da família e da comunidade, a outros grupos e até a outras espécies […] (GASPAR, 2016).
Ou seja, na medida em que a empatia é herdada da família e adotada como valor interpessoal, as cadeias de cooperação tendem a se sustentar por mais laços além de “mero” pragmatismo produtivo. Por exemplo, ajuda-se o vizinho porque você entende o que é sentir fome ou frio, e não porque espera algum tipo de retribuição.
“Mas e se for um vizinho espírito de porco, que votou no X invés do Y em 2018, torce pro time Z, manda áudio no zapzap, toca bateria no sábado de manhã, joga bituca de cigarro na minha janela e não segura elevador?”
É aí que reside o valor do gibi e da ficção. Como sugere a pesquisa de David Comer Kidd e Emanuele Castano,
[…] A capacidade de identificar e entender os estados subjetivos dos outros é um dos mais notáveis resultados da evolução humana. Ela permite navegar com sucesso nas complexas relações sociais e ajudam a manter respostas empáticas que as sustentam. Déficits neste conjunto de habilidades, comumente chamadas da Teoria da Mente (TdM), são associados com psicopatologias marcadas por dificuldades interpessoais. […]
Correlações entre a familiaridade com ficção, empatia auto-declarada e performance em testes de afetividade na Teoria da Mente foram registrados, e evidências experimentais limitadas sugerem que ler ficção eleva a empatia auto-declarada. A ficção parece também expandir nosso conhecimento sobre a vida dos outros, nos ajudando a reconhecer nossas similaridades. Embora a ficção possa conter valores sociais explícitos e reduzir a estranheza alheia, a relação observada entre familiaridade com ficção e Teoria da Mente podem ser devido a características mais sutis do texto. Qual seja, a ficção pode mudar como, e não apenas o que, as pessoas pensam sobre as outras. Nós inferimos que a ficção afeta os processos da Teoria da Mente porque ela nos força a acionar mecanismos de interpretação da mente do personagem. Nem toda ficção alcance este fim, porém. Nossa perspectiva é que a ficção literária é aquela que força o leitor a acionar processos de Teoria da Mente. (KIDD & CASTANO, 2013. tradução minha)
Em outras palavras, a ficção permite que você pense e sinta o que os personagens das histórias vivenciam. Ao colocar-se na perspectiva deles, o leitor/espectador aciona – ou pelo menos vislumbra – as mesmas emoções que um personagem ficcional é sujeito ao longo de uma história.
Verdade seja dita, o estudo de Kidd e Castano, limitado a uma amostragem relativamente pequena, é controverso e os resultados são difíceis de serem reproduzidos. No entanto, não é nenhum exagero reconhecer que nossa experiência de vida biológica é estreita demais para garantir um repertório emocional abundante. Ao menos, não é abundante o suficiente para garantir duas coisas: 1. navegar nas incontáveis situações de relacionamento social que temos ao longo da vida (escola, trabalho, relações amorosas, sexuais, amizades, posicionamentos morais, políticos, etc) e 2. Nos amparar de recursos para tornar a própria vida e de outros melhores sem maiores custos ao ambiente e às gerações seguintes.
O limite temporal e a necessidade de mais experiências para viver a nossa vida foi justamente uma das mensagens mais importantes de Blade Runner (Ridley Scott, 1982), ao final, no monólogo de Roy Batty:
“Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser.
Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.
Hora de morrer.”
Se você não viu este filme, que vergonha, trate de se retratar e assistir. Se viu, lembre que Roy era o androide “vilão” da narrativa. Mas ao final, graças às palavras e ações do personagem, passamos a apreender com clareza o terror de estar prestes a morrer. Por causa da história, nossa percepção empática foi ampliada e revelou uma necessidade humana importante, a vontade de viver e não ser esquecido.
Claro, nem toda ficção garante uma experiência emocional enriquecedora. Afinal, além do esforço dos autores na expressão das histórias, trata-se de uma questão também de gosto. Mas, como todo fã de quadrinhos sabe, as melhores histórias, as mais marcantes, talvez não venham encadernadas, ganhem prêmios ou custem mais do que um cacho de banana.
Às vezes, basta uma frase, uma página, uma cena, para aprender o que uma vida inteira não poderia ensinar – e que talvez só a velhice poderá mostrar sentido.
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