Perdidos no Espaço, Guerra Fria e o renascentismo americano

Por que você devia ver a nova série da Netflix ou dar atenção para o que lê aqui? A resposta para as duas questões é  a mesma.

 

 

Irwin Allen.

“Hein?”

É.

Na década de 1960, pouco antes de Gene Roddenberry ensinar que ficção científica tem o DNA da crítica social com Star Trek, Irwin Allen, um jornalista e publicitário, colocou dois temas marcantes da Guerra Fria, a corrida armamentista e a corrida espacial, na ordem do dia de milhares de pessoas sem que elas dominassem com clareza o significado dos acontecimentos do mundo real.

Irwin Allen foi o criador e produtor de quatro séries célebres de televisão: Viagem ao Fundo do Mar (1964-1968), a série original Perdidos no Espaço (1965-1968), Túnel do Tempo (1966-1967) e Terra de Gigantes (1968-1970). Cada uma abordava aspectos diferentes sobre aquilo que pouco se sabia, embora ocupassem espaço permanente no noticiário, assuntos como energia atômica, tecnologia aeroespacial, relatividade espaço-temporal, em suma, “ciência” no sentido mais alegórico e rasteiro possível.

Viagem ao Fundo do Mar retratava as desventuras do submarino Seaview e da destemida tripulação comandada pelo Almirante Nelson e seu imediato, Capitão Crane, oficiais da Marinha Americana. Interessante é que se tratava de uma missão exploratória em uma embarcação militar, conceito que lembra bastante Star Trek, que foi ao ar em 1966. Vale lembrar que na mente de Roddenberry, a nave estelar Enterprise era uma diligência, uma carroça espacial, que visitava territórios no espaço, a “fronteira final”, algo mais próximo do western do que da ficção científica.

A série Perdidos no Espaço original, em certo sentido, é idêntica à versão de 2018 da Netflix. Trata-se da malfadada viagem de uma família composta pelo astrofísico Prof. John Robinson, a botânica Dra. Maureen Robinson, os filhos Judy, Penny e Will Robinson, e três “agregados”, o piloto Don West, o penetra de moral ambígua Dr. Smith e o desajeitado Robô.

Mas as diferenças da série original em relação à atual chamam atenção: a matriarca Maureen estava mais pra uma “cozinheira” da nave, enquanto na nova série ela é a verdadeira líder da família e cientista chefe; Don West, invés de um mecânico, era o piloto e capitão da nave Jupiter 2; Judy, invés de médica, tinha uma promissora carreira como atriz de teatro antes de partir; John era o grande líder e figura central de toda a série, importância garantida pela atuação de Guy Williams no papel, após sua célebre interpretação do herói Zorro, anos antes. Ademais, a viagem da família Robinson na série original foi provocada pela degradação atmosférica na Terra provocada por guerras nucleares e eles eram os pioneiros na tentativa de alcançar Alfa Centauri.

O enredo de Túnel do Tempo lembrava bastante o conceito de Viagem ao Fundo do Mar. Com o gasto de bilhões de dólares do governo americano, uma comunidade de cientistas e militares construiu um gigantesco complexo subterrâneo onde trabalham centenas de pessoas. Algo similar ao Projeto Manhattan, que deu origem às bombas atômicas, mas desta vez muito mais ambicioso. Todo o complexo é dedicado a uma missão: a exploração e manutenção do tal túnel do tempo, capaz de mandar dois de seus mais destacados operadores, Dr. Tony Newman e Dr. Doug Philips, para diversos momentos no passado e também no futuro. Graças ao enorme depósito de filmes de época da Fox Film, produtora da série, Tony e Doug pareciam visitar quase todos os cartões postais do cinema já feitos até aquele momento.

Terra de Gigantes, última das criações de Irwin Allen para a TV, narrava as histórias da tripulação de uma nave espacial da Terra que cai num planeta onde tudo tem dimensões gigantescas (inclusive, para meu pavor infantil, gatos de feições diabólicas). Desta vez, invés de uma família, tratava-se de outra tripulação, composta de civis e militares.

De modo geral, as quatro séries tinham uma estrutura razoavelmente repetitiva, em que o conceito de cada uma era exposto e o enredo se desenrolava com a restauração da situação inicial dos personagens. Isso tornava os episódios autocontidos, sem conduzir o espectador num arco narrativo único ao longo de uma temporada, nem exigia conhecimento pregresso de novos espectadores sobre as séries.

Diferente de Star Trek, as séries de Irwin Allen pegavam leve na digressão filosófica – isso era quase inexistente – mas acentuavam o fator correria/pancadaria. Estavam mais pra uma ficção científica de fachada, onde o que importava era a exploração dos cenários e possibilidades técnicas, como por exemplo, o uso de modelos em miniatura para as naves e submarinos ou as versões comicamente ampliadas de utensílios domésticos, como canetas e telefones.

Verdade seja dita, as séries de Irwin Allen eram bem fraquinhas. O que chama a atenção é que no momento em que Terra de Gigantes foi cancelada, em 1968, o orçamento dedicado à implementação do programa espacial americano estava começando a cair consideravelmente. No sentido oposto, quanto Viagem ao Fundo do Mar e Perdidos no Espaço estavam sendo lançadas, o orçamento da NASA atingiu seu ápice histórico. Olho na planilha:

1964 1965 1966 1967 1968
Viagem ao Fundo do Mar US$32.200 bilhões
Perdidos no Espaço US$32.600 bilhões
Túnel do Tempo / Star Trek US$31 bilhões US$29 bilhões
Terra de Gigantes US$26 bilhões

Fontes:

https://en.wikipedia.org/wiki/Budget_of_NASA#Annual_budget https://aerospace.csis.org/data/history-nasa-budget/

Viu a diminuição gradual do orçamento da NASA? É uma variação negativa de cerca de 6 bilhões de dólares, o mesmo que algo em torno de 20 bilhões de reais. Para se ter uma ideia, o orçamento de 2018 do estado do Piauí é 12 bilhões de reais.

Mas para quem não ficou claro: arrisca-se dizer que existe uma correlação (o que é bem diferente de causalidade, ressalte-se) entre o investimento público no setor aeroespacial americano e a presença dos temas a ele associados na cultura de massa, bens culturais como os quadrinhos, os filmes e as séries de Irwin Allen.

Em outras palavras, durante a Guerra Fria, em especial na década de 1960, a seleção dos temas de bens culturais pelos produtores está ligada aos projetos políticos e militares que os americanos buscavam implementar. As séries traziam imagens, símbolos e conceitos associados ao arrojo, ao destemor, à engenhosidade e avanço tecnológico, itens subjetivos, sumamente domésticos, mas que as instituições americanas pareciam projetar como identidade ou ideal por meio de seus atos oficiais.

A ideia não nasceu aqui, mas veio do Norman Mailer, que ao escrever sobre a disputa presidencial entre John Kennedy e Richard Nixon em 1960, matou a pau:

“[…] a América foi também o país no qual o mito dinâmico da Renascença – de que todo homem era potencialmente extraordinário – conheceu sua mais apaixonada persistência. A América simplesmente foi a terra em que as pessoas ainda acreditam em heróis: George Washington; Billy the Kid; Lincoln, Jefferson; Mark Twain, Jack London, Hemingway; Joe Louis, Dempsey, Gentleman Jim; foi um país que cresceu saltando de um herói para o outro – existe por acaso comarca em todo o nosso território que não tenha sua figura legendária? E quando o Oeste foi ocupado a expansão voltou-se para dentro, tornou-se parte de uma agitada, superexcitada e superaquecida vida de sonho. Os estúdios de cinema acenderam seus holofotes quando a fronteira estava definitivamente estabelecida, e as possibilidades românticas da velha conquista de território foram transformadas num mito vertical, preso no interior do crânio, de um novo tipo de vida heroica, cada qual escolhendo seu próprio arquétipo de homem neo-renascentista, fosse ele Barrymore, Cagney, Flynn, Bogart, Brando ou Sinatra, mas era quase como se não houvesse a paz, a menos que se pudesse lutar bem, matar bem (embora sempre com honra), amar bem e amar muito, ser cool, ser ousado, ser enérgico, ser indômito, ser astuto, ser desenvolto, ser um valentão. E esse mito – de que cada um de nós nasceu para ser livre, para andar sem destino por aí, para viver aventuras e surfar nas ondas do violento, do perfumado e do inesperado[…] o mito não morreu. (O Super-Homem vai ao Supermercado, pp. 44-45)

A nova versão de Perdidos no Espaço parece uma confirmação do que Norman Mailer percebeu quando assistiu a eleição do senador de Massachusetts. O mito do “renascentismo americano”, de que todo homem tem o potencial de ser extraordinário, busca formas atualizadas de se manifestar, agora também por meio da representatividade. A comarca, graças à internet, agora é global, tem várias cores de pele e fala em diferentes línguas.

Antes, mostrou Irwin Allen, a exploração espacial era pauta do herói da época – Kennedy exortava os americanos a chegar na Lua até o fim da década. Em 2018, Elon Musk fez crer que chegar ao espaço é questão de iniciativa, um livre empreendimento. Mas para quem ainda não viu a série, fique atento ao críptico recado gravado em pedra: “Os Robinsons [já] estiveram aqui”.

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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Uma resposta para Perdidos no Espaço, Guerra Fria e o renascentismo americano

  1. Lair Amaro disse:

    Brilhante! Seu texto foi simplesmente brilhante. Minhas efusivas palmas!

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