Talvez você já tenha ouvido falar de MAUS. Mas não importa qual o nível da sua relação com MAUS, ela é sempre surpreendente.
Talvez você seja um admirador do trabalho de Spiegelman e entenda o peso que essa narrativa tem para a legitimação dos quadrinhos como uma linguagem única diante de outras linguagens como o cinema, a literatura e as artes plásticas.
Esse post é uma homenagem, não só ao trabalho magistral de Spiegelman, mas à todos que, como nós dos Quadrinheiros, buscam extrair dos quadrinhos todas as possibilidades de leitura que eles oferecem. Merecidamente fazemos aqui um elogio a um canal de ensaios sobre cultura pop chamado NERDWRITER, capitaneado pelo excelente Evan Puschak. Recomendo vídeos como o que ele fala sobre a técnica de câmera de David Fincher (diretor de SEVEN e mais recentemente da série MINDHUNTER), sobre como o diretor Edgar Wright faz as transições de cena do filme SCOTT PILGRIM, e sobre a participação de Shakespeare em SANDMAN. Mas essas são só pontas do iceberg – vale assistir tudo que ele produz.
Sobre MAUS, Puschak nos mostra uma página da HQ para falar sobre a importância da memória como mola propulsora de uma narrativa sobre um filho que mergulha no passado de seu pai. O título do vídeo é “Como desenhar uma página de quadrinho” e o foco do ensaio é o peso que tem para a narrativa a divisão dos quadros na página e os elementos e enquadramentos de cada cena.
No primeiro quadro da página o personagem de Art Spiegelman vai com seu pai até seu antigo quarto, onde Vladek (o pai) vai se exercitar em sua bicicleta ergométrica. No segundo quadro vemos o quarto de forma mais detalhada, como elementos da juventude de Art, a bicicleta de Vladek, e nesse momento o filho fala sobre a vontade de escrever a história de seu pai (que é a história que temos na mão e estamos lendo). Já estão presentes nesses dois quadros o tema da memória (a história pretendida, que é a memória do pai, e o quarto, que é a memória do filho), além da memória de como nasceu a ideia de escrever a narrativa que lemos.
O terceiro e o quarto quadros avançam o diálogo entre pai e filho, enquanto Art olha para um retrato e pergunta sobre a Polônia e a guerra (mais memória). O quinto quadro se extende de um lado ao outro da página (dividindo a página), e mostra os dois personagens cercados por marcas do passado (a fala de Vladek que reluta em revisitar sua história, seu número de prisioneiro tatuado no braço e o retrato na mesa ao lado de Art).
No sexto painel os leitores descobrem que a foto no porta-retrato é de Anja (mãe de Art), e essa informação dá mais profundidade aos quadros três e quatro (nos quais Art olha para a foto e depois olha para seu pai). Os quadrinhos são a única mídia em que o olhar do leitor pode rapidamente revisitar cenas do passado e resignificá-las, já que passado, presente e futuro convivem na mesma página. No sétimo painel Vladek pedala sua bicicleta. A metáfora de uma bicicleta que não leva a lugar nenhum, mas serve de “gancho” para um passeio pelo passado do pai de Art Spiegelman é bastante poética. O último quadro é circular (quebrando o fluxo temporal da narrativa) e mostra a primeira imagem da juventude de Vladek.
Mais do que a progressão da narrativa, quadro a quadro, o design da página de Spiegelman nos mostra qual é o ponto focal de sua narrativa. O corpo de Vladek, pedalando sua bicicleta, girando a roda da memória, descortinando seu passado para nós leitores, aparece como uma mancha central na página, espalhada por diferentes quadros.
Essa obra que levou 13 anos para ficar pronta, não “aproximou” os quadrinhos de linguagens estabelecidas e reconhecidas como a literatura e as artes plásticas. MAUS é uma história em quadrinhos e as características peculiares dessa linguagem estão presentes em cada quadro e em cada página. Sua alta qualidade narrativa mostra o peso e a complexidade que só a Nona Arte tem, e abriu caminho para que ela não seja considerada menor. Para ler e reler sempre!
Para quem quer ver essa história na narração ensaística de Evan Puschak:
meu sonho é ver 1 HQ abordando Jasenovac (a Auschwitz croata). Jasenovac foi um campo de extermínio criado pelos Ustase (nazis croatas) em 1941. Era um verdadeiro abatedouro e açougue humano.(de dar inveja a Leatherface, Michael Myers e Freddy Krugger)
As principais vítimas: sérvios, ciganos, judeus e antifascistas.
Curiosamente os próprios alemães pediram moderação aos subordinados Ustase.
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