Da Grécia à Cleveland, a comédia pede passagem

taikomochiÉ no campo da comédia em que reina a chance de se criticar sob a neutralidade do riso. Por isso mesmo ela pode ser universal.

A comédia é universal. Desde os primórdios da narrativa é um dos gêneros mais marcantes. E desde o começo se caracterizou como um modo de crítica da sociedade e das estruturas de poder.

Presente no teatro grego, a Comédia figura como a contrapartida do Drama, permitindo que as críticas mais descaradas pudessem ser tratadas como uma mera piada. Por sua vez, nas cortes da nobreza europeia, os bufões tinham o papel da zombaria e acabavam, de maneira sinuosa, criticando a sociedade. Profissionais semelhantes são encontrados em outras culturas como a Japonesa e o caso dos Taikomochis.

Também nos EUA, o humor nos tem características muito marcantes. Enquanto no Brasil em grande parte o que se vê é o humor físico, ou de preconceitos, no caso americano a saída é outra. A alquimia do humor americano é fundada no escárnio do indivíduo, mesmo que nem toda “comédia americana” siga esse preceito com rigor exclusivo.

Se de um lado, na narrativa dramática e de epopeia, temos a essência do selfmade man e o sucesso do indivíduo, na comédia vê-se o oposto. Seja ao ridicularizar um indivíduo como um político, seja ao depreciar a si mesmo, o humorista toma como referência que aquilo deve ser ressaltado e escancarado. É essa ruptura com o que se espera de sucesso que se toma como razão do riso.

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Por exemplo, Bob Hope, considerado um dos pais do Stand-up Moderno

O escárnio do indivíduo é de tal valor que o stand-up é o formato mais bem sedimentado do estilo. Desde a época das rádios são transmitidas as apresentações desses humoristas, que, sem nada mais do que seu repertório de histórias, buscam causar o riso. Mas, com a devida atenção, não são piadas prontas, mas narrativas que fazem parecer que o contador está conversando com a plateia.

Jerry Seinfield, por exemplo, é um referencial de quem acabou tornando a forma um produto possível para narrativas mais seriadas. A série do humorista é sobre o nada. Assim como as aberturas são nada mais do que trechos de apresentações do próprio criador-roteirista-personagem. Todas as temporadas, assim como todos os episódios não formam de fato uma grande história, assim como não há um objetivo com a narrativa.

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A série Seinfield se tornou molde para grandes sucessos posteriores como Friends, Big Bang Theory e How I met your mother. Mesmo que estas tenham um grande arco, todas focam no cotidiano dos personagens e suas relações, de maneira cômica.

De forma semelhante, nos quadrinhos, Harvey Pekar também adotou esse caminho. Cansado dos quadrinhos que falavam sobre seres irreais e sobre situações intergalácticas, o arquivista do hospital do exército de Cleveland passa a contar sobre seus pensamentos e situações. Influenciado pela amizade com Robert Crumb, Harvey abriu espaço para um quadrinho autoral sem precedentes.

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Uma das capas da revista de Pekar e Crumb

É na onda dos comics underground que surge essa figura nada simpática. Ele representa não os grandes criativos da Broadway ou de Hollywood, mas sim o americano mediano de uma cidade mediana com uma vida mediana. O grande truque das narrativas estão no seu modo de contar.

Um dos momentos altos da série é quando as páginas não trazem mais do que o personagem principal falando. Sem fundo. Sem mudanças de “câmera”. Apenas o puro impacto do que profere Harvey Pekar sobre si mesmo.

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Primeira página da história sobre o nome  Harvey Pekar

Pekar é notável ao transformar o que antes era feito no rádio e na televisão, com os grandes humoristas de Stand-up, em um quadrinho simples e acessível. Sua crítica ao sistema e às amarras que vive um americano no mundo contemporâneo tem o ímpeto de comédia social, e não necessariamente política. Algo que se poderia se assemelhar ao que no Brasil se vê sob o formato de crônica.

Importante assinalar que o traço de Crumb e a escrita de Pekar despertaram cartunistas brasileiros como Laerte, Angeli e outros ao revelarem que não havia uma amarra na responsabilidade política da comédia. A crítica social ironizando os tipos e caricaturizando as situações se tornou uma das marcas do humor paulistano, mas é reconhecido pelos cartunistas como uma influência desse movimento humorístico americano.

Em conversa informal com o recém falecido Toninho Mendes, ele confirmou uma intuitiva impressão… O próprio editor da Circo deixou claro que a revista Chiclete com Banana foi fruto do contato com esses quadrinhos de Crumb e o movimento Beat, influências marcantes no trabalho de Harvey Pekar. Ou seja, pode-se considerar a Chiclete como fruto derivado de um humor americano característico em terras tupiniquins, e de maneira mais do que apropriada, seu maior baluarte usa o nome da mistura de duas culturas.

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O traço, o tom e o modo de diálogo se aproximam muito do estilo de Crumb

Esse intercâmbio das comédias mostra que, de fato, a linguagem mais universal é o riso. Mesmo que haja uma perda nas traduções, ouvir/ler/assistir um humorista de qualquer parte do mundo nos afetará, fazendo com que nossos humores, se alterem, se choquem e nos motive. Por isso, mesmo que a linguagem tenha se afastado do cômico, as Histórias em Quadrinhos ainda tem muito contato com esse estilo.

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