Para entender quadrinhos estude a linguagem

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Entenda o porquê.

E por que.

Ou porque também.

Muitas pessoas querem entender os quadrinhos. Mesmo que não seja para ser um artista, elas querem entender a nona arte por um ângulo mais profundo, mesmo que nunca cheguem se sustentar nessa carreira. De todo modo pode-se listar alguns agrupamentos dos interessados:

Os desenhistas

Eles até podem contar com cursos de técnicas de desenho e quadrinização, inclusive aqueles focados em estilos específicos. Mas todos acabam partindo de três pressupostos básicos: a capacidade artística do desenhista; o treino constante; o conhecimento sobre a linguagem. Os dois primeiros, pré-requisitos, de fato não temos muito como interferir, depende do artista. Já o primeiro, chame-se de habilidade ou dom, sabemos que algumas pessoas têm a “facilidade” para a arte e outras não.

Os roteiristas

Estes podem contar com cursos de roteirização e escrita criativa. Ainda que focados na literatura e no cinema, ajudam muito para a compreensão de ritmo e construção de narrativa. Entender o roteiro e como ele funciona, tanto nos artifícios básicos como na criatividade, são essenciais. Mas, assim como no caso dos desenhistas, existem alguns pré-requisitos: repertório; vontade de exercitar; criatividade; conhecimento da língua; e conhecimento da linguagem na qual o roteiro será transformado. Nesse caso, todos podem se aventurar, apesar de nem todos alcançarem sempre os resultados idealizados.

Jornalistas, Críticos e Pesquisadores

As pessoas que querem trabalhar em outros âmbitos dos quadrinhos. Este grupo, no qual os Quadrinheiros se encontram, demanda um esforço diferente. Conhecer a linguagem, seus processos de produção, os figurões da indústria, o histórico das obras, como elas se constroem, e por aí vai. Uma gama bem grande de saberes, para aí sim poder observar, comentar e discutir sobre quadrinhos.

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Um exemplo de um jornalista em seus mais profundos estudos

Vejam que nos três agrupamentos indicados existe um ponto de contato em comum: o estudo da linguagem. Claro que cada um dos grupos irá optar por um percurso distinto, mas existem alguns tópicos indispensáveis. Eles não são os únicos e muito menos a resposta final para todas as dúvidas possíveis sobre a linguagem, mas eles são ponto de partida para que cada um crie seu percurso de aprendizagem.

É uma alfabetização. É necessário um “letramento” para alcançar um patamar de compreensão e observação. Ler quadrinhos como um leitor é um exercício bem distinto de realizar a leitura enquanto um interessado nas demais camadas da linguagem. Exige um treinamento dos olhos. Esse desenvolvimento é adquirido, parcialmente, pelo repertório de leitura. Quanto mais se lê, mais se percebe as semelhanças e os recursos usados, porém, em algum momento, será preciso um pouco mais.

Nessa hora olha-se para o mundo acadêmico. Mesmo que o objetivo não seja ser um pesquisador, alguns textos podem ajudar a compreender melhor os quadrinhos. Veja que essas leituras não são condição para se aventurar na leitura ou mesmo no lado do entretenimento, mas eles estão aí para nos levarem à frente. É para os que querem um pouco mais.

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Conhecimento é bom, mas dá trabalho.

A primeira recomendação são dois livros de Will Eisner escritos a partir da sua série de palestras na Escola de Artes Visuais de Nova Iorque. Enquanto que em Quadrinhos e arte sequencial (1985) ele apresenta os conceitos básicos da construção de ritmo e define o que é a linguagem, em Narrativas Gráficas (1996) ele entra mais a fundo nas questões de como compor a narrativa para os quadrinhos.

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Primeira obra acadêmica de Eisner

Em sequência vale a indicação de algumas obras do pensador italiano Umberto Eco. Apesar dos objetos de estudo serem um pouco mais densos e pontuais, sem dúvida eles enriquecem de maneira incomparável quem lê quadrinhos. Em um de seus principais livros, o Apocalipticos e Integrados (1964) , onde faz uma perspicaz observação da cultura de massa, é apresentado o conceito do mito Super-Homem. Além de um capítulo inteiro dedicado ao filho de Krypton, ainda constam um capítulo sobre o Steve Canyon e um capítulo sobre a turma do Snoopy. A partir do impacto desses textos foi escrito outro livro de Eco, O super-homem de massa (1976), que analisa outras obras para além dos quadrinhos, observando personagens distintos, inclusive o James Bond.

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A capa da edição brasileira

Não podemos deixar de lado, nesse primeiro bloco, o clássico, porém datado, Para ler o Pato Donald (1971) de Ariel Dorfman e Armand Mattelart. Na obra os autores se preocuparam em mostrar, de maneira gritante, a ideologia por trás dos quadrinhos da Disney. Essa produção de quadrinhos infantis era um imenso sucesso em toda a América Latina. Os estudiosos então apontam como essas publicações eram um modo de difundir as crenças e o modo de pensar da cultura dos EUA, sendo eles praticamente os veículos principais para uma dominação cultural. Apesar do tom catastrófico e da carregadíssima ideologia, o texto anti-yankee é importante para compreender como alguns dos teóricos latinos entendiam a questão. Veja que as críticas já não são tão válidas na atualidade, mas sem dúvida o trabalho contribui até hoje na academia.

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A própria capa já demonstra o modo maligno do pato sem calças.

Somam-se a essas cinco obras os livros, bem mais recentes, de Scott McCloud. Seguindo a própria ordem cronológica de lançamento, primeiro vale ler o Desvendando os Quadrinhos (1993), no qual ele define os conceitos e estrutura o modo de produção da nona arte. Em Reinventando os quadrinhos (2000), o autor dá um passo além, ao mostrar como as novas tecnologias e técnicas podem contribuir no desenvolvimento da linguagem. Por fim, em Desenhando Quadrinhos (2006) ele parte para a prática, mostrando como os conceitos são aplicados e trabalhados nos quadrinhos.

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O Interessante é que o livro é, em si, um quadrinho

Mas mais do que o conceitual é importante também o histórico. Para conhecer um bocado sobre a história dos quadrinhos, para além dos super-heróis, vale a leitura do Quadrinhos: História moderna de uma arte global (2014), de Dan Mazur e Alexander Danner. De uma maneira extensa, porém acessível, os autores mostram um grande percurso dos quadrinhos na Europa e nos EUA, apenas passando ao largo de Marvel e DC. É importante conhecer também a leitura do Homens do Amanhã (2005) de Gerard Jones, um exame de como surgiu e se estabilizou a indústria dos quadrinhos nos EUA, em especial as grandes editoras.

Para entender o histórico dos quadrinhos no Brasil a dica de primeira linha é o livro Guerra dos Gibis (2004), de Gonçalo Junior. Nele o autor faz uma extensa pesquisa sobre as primeiras histórias em quadrinhos americanas no Brasil, em meados dos anos 30, até o início do governo militar. Acaba sendo uma boa leitura para os interessados na história da imprensa brasileira por tratar também de figuras como Assis Chateaubriand e Roberto Marinho.

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A capa mostra muito pouco da importância do livro

No campo teórico o Brasil também é muito profícuo. Um dos nomes mais interessantes para iniciar os estudos é o de Luiz Antonio Cagnin. Foi um dos principais nomes da semiótica e responsável por obras como Os Quadrinhos: Linguagem e semiótica (1975). Na obra é apresentada uma das metodologias até hoje mais difundidas para o estudo e a compreensão da linguagem dos quadrinhos. Junto com ele não pode-se deixar de fora Moacy Cirne, que é responsável por obras como A linguagem dos quadrinhos (1971), que a partir de produções brasileiras mostra como são as possíveis modalidades de escrita e leitura da linguagem.

Existem ainda tantos outros livros, autores e pesquisas, sendo as obras citadas apenas um convite para expandir o universo do leitor. O letramento para os quadrinhos ainda é um processo longo e complicado. Mas sem dúvida a maior parte dos nomes citados acabará, mais cedo ou mais tarde, aparecendo nas listas e nas referências. Cabe a cada um escolher trilhar seus diferentes percursos.

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2 respostas para Para entender quadrinhos estude a linguagem

  1. Quiof disse:

    Não sei quanto os outros, mas Para Ler o Pato Donald alterou alguns diálogos, de acordo com Thomas Andrae e David Kunzle (historiador britânico que traduziu o livro), Barks fazia críticas ao capitalismo e não haviam pressão ideológica da Disney). Não é tão diferente do Seduction of the Innocent do Fredric Wertham, que manipulou dados para mostrar seu ponto de vista.

    • Nerdbully disse:

      No livro Carl Barks and the Disney Comic Book – Unmasking the Myth of Modernity Andrae defende a tese de que Barks fazia uma crítica à representação da cultura urbano-industrial em sua obra, fazendo também a crítica da tradução utilizada pelos autores (e muitas outras referentes à sua metodologia), mas não que Dorfman e Mattelart tenham adulterado a tradução para fazê-la encaixar em suas teses, mas apontando o fato de que os editores latino-americanos faziam alterações nas histórias originais e que Dorfman e Mattelart utilizaram-se dessas traduções equivocadas (e não do material original), muito diferente das adulterações metodológicas deliberadamente feitas por Wertham.
      E mesmo David Kunzle reconhece a importância da análise na introdução feita por ele à obra em sua tradução, ao dizer que tem o mérito de trazer à tona como os valores capitalistas e imperialistas encontram respaldo na produção cultural dos Estados Unidos.

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