
Capa da New York Times Magazine
“A Netflix destruiu o modo como vemos televisão”.
Essa frase figurou na capa da New York Times Magazine (uma revista-encarte que sai junto com o jornal aos Domingos, e é majoritariamente dedicada à Moda, Estilo e Arte) no dia 19 de junho de 2016. O texto referido, escrito por Joe Nocera, na verdade carrega o título de A Netflix conseguirá sobreviver ao mundo que ela mesma criou?. O debate é justamente sobre as principais mudanças comerciais que o novo serviço de conteúdo audiovisual trouxe para a cena.
Se antes o produto audiovisual era condicionado por anunciantes e número de espectadores, hoje em dia há uma guinada nova. Dentro da lógica do chamado Client oriented, ou seja, produto orientado para o cliente, não é o número de indivíduos assistindo que conta apenas, mas sim o quanto esse produto agrada aos espectadores.

Cabeçalho da matéria que pode ser lida no original aqui
A mudança parece pequena, mas ela é de um impacto nunca antes visto. Até então, principalmente nos domingos em família, bastava colocar conteúdo de programa de auditório e muita bunda que havia um público garantido. Indo desde a criança inocente até o tio tarado, todos acabavam cativos da programação. Mesmo que se buscassem alternativas, a fórmula não se altera totalmente. Isso, em primeira instância e numa leitura rasa, pode recair sob a ideia da cultura popular ser subalterna ou mesmo xucra, mas cuidado, não caia nesses preconceitos. Essa construção quase Weberiana de modelo de programa é fruto de anos e anos de televisão aberta e programação determinada quase exclusivamente pelos donos das emissoras e as empresas anunciantes.
Antes de continuar qualquer apontamento ou reflexão é de suma importância indicar algumas trilhas de raciocínio que não podem ser ignoradas. A primeira é a existência e o assassinato da TV Excelsior no Brasil. Não por menos, um dos principais nomes dessa emissora foi Álvaro de Moya, figura importante também no universo dos quadrinhos nacionais e internacionais.

Logo da Extinta emissora
Nos seus breves, porém intensos 10 anos (1960-1970), a Excelsior inovou, com impactos nacionais semelhantes ao que a Netflix tem feito no Brasil hoje em dia. Foi nessa emissora que muitos programas e muitas lógicas de construção de uma produtora de conteúdo se solidificaram e se tornaram brasileiras. Um dos nomes mais cruciais da atual Televisão Brasileira, o Boni, teve uma passagem pela emissora e se baseou lá para muito do que é produzido até hoje.
A Excelsior questionou o modo de se produzir audiovisual. Solidificou as grades de programação, os intervalos comerciais como momentos de propaganda, enfim, a qualidade profissional de um canal de televisão nos moldes do que conhecemos hoje. Mas junto, questionou o governo em plena Ditadura. Isso acarretou uma perseguição política muito intensa, contando inclusive com boicotes empresariais, e levando-a a falência.
A segunda trilha se relaciona à produção de roteiro. Enquanto uma novela no Brasil tem um grande autor que acaba coordenando o texto e trabalha junto com um diretor geral e os diretores de cena, no modelo americano existe uma outra organização. Não há um autor, mas sim a figura do showrunner, que nada mais é do que o diretor dos roteiristas. Ele é o escritor responsável pela coerência das cenas, da história e o ritmo. Mas não é ele que de fato escreve cada parte do texto, uma vez que isso é feito a partir da união de diversos perfis de autores. Existem roteiristas especializados em cada tipo de cena ou de propriedade ou de gênero. Isso acarreta inclusive o surgimento de roteiristas que cuidam exclusivamente de um único personagem.

Essa cena é do 30Rock, uma das melhores séries para entender como funciona essa tal sala de roteiristas.
Tendo em mente esses dois fatores, podemos retomar o debate sobre a Netflix e com atenção para o Brasil. Como já indicamos, a construção de todos os produtos originais da Netflix é focada nos interesses dos espectadores, ou seja, é a partir dos dados coletados de cada usuário e filtrado com mecanismos de Inteligência Artificial (I.A.). Mas calma, não é uma aproximação com um ponto de singularidade asimoviano! São apenas algoritmos que vão progressivamente aprendendo quais são os dados que mais se repetem, construindo assim perfis dos espectadores.
Ao abrir o seu Netflix você poderá se chocar ao notar que quanto mais você assiste diferentes séries, mais as indicações serão interessantes para você. Isso é o algoritmo de IA em ação, uma vez que ele vai acumulando o máximo de informações para aprender o que te agrada. Isso inclui desde diretores que você já completou a filmografia, atores que você pesquisou na base de dados deles, até os subgêneros de filmes que você mais assiste.
Só isso já seria algo incrível. Agora some isso com o capital necessário para produzir conteúdo focado nessas informações. Stranger Things é fruto disso. Acumulando as diferentes informações dos diversos assinantes, a Netflix pôde identificar que uma série com referência aos anos 80, tendo como base a cultura Nerd, inspirações em um Terror de Ficção Científica e a identidade de um grupo de crianças aventureiras, seria um estrondoso sucesso. Isso é um trunfo muito bem usado.

Até as escolhas de design das letras usaram essas informações
Ao contrário do que muitos indicam não foi uma série encomendada nesses moldes, mas sim foram esses dados que informaram aos “caçadores de conteúdo” o que eles deveriam buscar. É o uso da inteligência empresarial a favor do consumidor e não apenas dos anunciantes. Oras, o fato de você poder consumir o que te interessa e pagar diretamente para a produtora é a verdadeira inovação.
Isso põe as produtoras e emissoras em choque, em um primeiro momento. E foi o que de fato aconteceu no Brasil. Estamos próximos de termos a primeira série produzida no e para o Brasil que será veiculada internacionalmente. 3% é uma série de ficção científica que já tinha sido comprada alguns anos atrás para ser produzida, porém nunca foi realizada. Na época houve um grande furor, inclusive pelo que uma série brasileira não falando exclusivamente de problemas sociais representa. É a primeira ficção científica em larga escala criada e produzida no Brasil, que pode, como consequência, mostrar que somos mais do que peito e bunda e até mesmo mais que nossos problemas.
Assim como a Excelsior, entre os anos 60 e 70, chacoalhou o mercado, a Netflix fez o mesmo. A Globo não ficou para trás em ambos os casos. Se nos anos 80 absorveu as técnicas e parte dos empregados da concorrente, agora, nos anos 2000, começa a pensar sua programação cada vez mais focado no espectador e nos gostos desse público. Por mais que ainda soe como muito distante, já existem resultados claros dessas mudanças.
Desde a contratação do Adnet, permitindo a produção de programas como o “A TV na TV”; as novelas das 11, como Verdades Secretas; as próprias mudanças nas novelas das 9, para um tom mais brasilianista e artístico-inventivo como o caso da Velho Chico; mostram justamente que a Rede Globo de Televisão já dá sinais de mudanças profundas. Junto com isso há o lançamento da Globo Play, que é a Netflix da Globo, permitindo ao espectador não mais estar restrito aos horários da grade oficial, mas sem deixar de consumir os conteúdos por eles produzidos.

A TV que saiu da TV
A grande pergunta que ainda fica no ar é como a Netflix irá reagir às reações, quase numa contra-contrarreforma, uma vez que sua fórmula já ficou escancarada. De fato, a pergunta de Joe Nocera é extremamente pertinente. Já nota-se que a briga não será curta ou pequena, tendo em vista também as reações externas, como a criação da HBOGo.
A guerra apenas começou.