Sexualidade, insetos e pesquisa científica

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No livro A Metamorfose, de Franz Kafka, o personagem principal, Gregor Samsa, vive um pesadelo ao perceber que se transformou inexplicavelmente em uma barata gigante. Sua irmã e os pais, que a princípio tentam conviver com a nova condição de Samsa, sentem cada vez mais repulsa por aquela criatura e eventualmente o deixam morrer sozinho em uma sala vazia.

A insólita narrativa usa a figura de uma barata para ilustrar o horror existencial do personagem, já que a relação entre seres humanos e insetos é marcada pelo asco e pelo medo.

Mas e os quadrinhos? 

Nos quadrinhos existem centenas de personagens baseados em insetos, alguns bem conhecidos e queridos como Homem Formiga, Vespa, o Besouro Azul e o mais famoso de todos – o Homem Aranha. Embora no caso do Aranha a exista uma relação clara entre seus poderes de inseto repugnante e a sua condição de adolescente desprezado por seus pares, a maior parte dos personagens são criados de forma menos visceral.

Em 2014 pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da UNIRIO publicaram no International Refereed Research Journal um artigo que listou e organizou os personagens baseados em insetos da Marvel e da DC, catalogando 16 ordens de insetos, com 40 personagens inspirados em himenópteros (abelhas, vespas e formigas), 36 inspirados em besouros e 35 em borboletas e mariposas e assim por diante, entre outros.

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“Mural de ideias de Jack e Stan”

Na Marvel a distribuição de personagens inspirados em insetos tem um equilíbrio numérico entre heróis e vilões, enquanto na DC a grande maioria desses personagens é vilão. Das personagens femininas a identificação da grande maioria é com abelhas, vespas, mariposas e borboletas. Os personagens masculinos estão presentes em todas as categorias de insetos.

Essa pesquisa acadêmica segue uma tendência interessante, que coloca a cultura como elemento vivo de investigação científica. Na publicação os pesquisadores citam outros artigos de biólogos que investigaram insetos retratados nos quadros de El Bosco e Salvador Dalí e o significado místico da representação de duas espécies de borboletas em pinturas do século XV,  além de citarem algumas espécies recém descobertas que foram batizadas como nomes tirados da cultura pop, como a lesma do mar “Daenerys“, o dinossauro “Loki” e a cigarra “Batman“.

Esse cruzamento entre disciplinas é muito saudável já que cria conexões inusitadas entre áreas distantes do conhecimento, apresenta para diferentes públicos os saberes muitas vezes herméticos da academia e despertam interesses e vocações as vezes desconhecidos.

Um desses exemplos que permitem múltiplas leituras é uma história de 1965 (Superboy #124), que conta o encontro de Lana Lang com um alienígena/inseto. Ela salva o visitante que como recompensa deixa para ela um anel que a transforma em diferentes insetos. Como em qualquer narrativa delirante da Era de Prata, Lana imediatamente assume a identidade de Rainha Inseto e passa a combater o crime e salvar pessoas em perigo. O interessante é que a metamorfose pela qual a personagem passa é tão grotesca quanto a do personagem de Kafka, mas isso não perturba Lana, nem as pessoas que interagem com ela durante suas transformações.

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Na sequencia acima Lana Lang  usa seus novos poderes para resolver questões cotidianas. Antenas a ajudam com a lição de casa e ela se transforma em uma centopéia para terminar rapidamente seu castigo por ter errado a grafia da palavra ÊXTASE. A escolha da palavra no contexto da história é interessante porque nos leva a uma leitura sobre sexualidade. Uma personagem feminina se transforma em algo grotesco para atingir mais rápido o êxtase…

A relação entre personagens femininas e insetos como abelhas e vespas, que vivem em colmeias controladas por rainhas, onde os zangões (os machos da espécie) servem apenas para reprodução e em geral morrem logo depois da cópula, também é uma leitura possível, não só sobre a representatividade das mulheres nos quadrinhos, mas também sobre os mitos a respeito da sexualidade feminina (já que os autores das histórias eram todos homens).

Seja na academia, seja fora dela, quanto mais cruzamentos fizermos entre cultura pop, ciência, costumes, política, etc, mais interessante todos esses assuntos ficam, mais esclarecida e complexa passa a ser a nossa leitura de mundo, ou no mínimo, mais divertidas serão as nossas conversas de bar.

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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