Estupro, assédio e loucura: Reflexões sobre Jessica Jones e feminismo

jessica-jones-netflix-poster[ATENÇÃO: o texto aborda temas tratados na série. A trama em si não é revelada, porém algumas informações podem ser consideradas spoilers. Leia por sua conta e risco.]

Sempre que sai uma nova série sobre quadrinhos surge a pergunta óbvia: Por que devo assistir a essa série?

No caso de Jessica Jones a resposta seria fácil. O simples fato de ser uma produção que vai continuar enriquecendo o Universo Cinematográfico da Marvel já seria um ótimo ponto. Mas para nós não basta essa indicação.

O que faz com que se tenha interesse numa série baseada numa personagem autoral que saiu inicialmente pelo selo Marvel MAX? Só o fato de estar no selo adulto da Marvel seria interessante. Mas não podemos  nos iludir com um “fetiche” marcado pelo estilo da Vertigo.

A revista Alias foi a primeira revista do selo Marvel MAX, um momento de excelência de Brian Michael Bendis e Michael Gaydos. Vale a leitura e a compra, para figurar entre os selecionáveis do que salvar em caso de incêndio. O Nerdbully já teceu alguns comentários importantes sobre a série, em especial focando na sua produtora e mastermind, Melissa Rosenberg.

capa da primeira edição de Alias

capa da primeira edição de Alias

O que chamo à atenção é outra faceta dessa história, que vai para além da qualidade técnica e de roteiro. Observo o tema que fica latente em cada cena, ao mesmo tempo que figura como pano de fundo.

O Homem Púrpura nos quadrinhos parece uma personagem do intangível mundo mágico aonde tudo pode acontecer. Mas quando David Tennant, com toda a sua excepcionalidade, encarna o personagem na série,  tudo se torna mais real. Assim como no caso do Rei do Crime, vivido por Vincent D’Onofrio na série do Demolidor, o Killgrave de Tennant parece ser um humano tão possível quanto você. E isso inquieta muito.

Com seus olhares e modos de fala, por si só, já teríamos uma profundidade imensa de conflito. Mas quando um poder como o do convencimento ganha a gravidade mostrada na série, as coisas se agravam. O jogo entre a heroína e seu nêmese, que poderia ser irreal e restrito ao mundo fantasioso, é mais próximo do que parece. A capacidade de subjugar o outro, como Killgrave faz, não é um superpoder. Diariamente muitas mulheres sofrem com isso.

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Numa sociedade patriarcal e machista, um casamento no qual a mulher passa a ser uma servente do seu marido, é algo mais normal e cotidiano do que podemos pensar. Além da ideia de propriedade, devemos levar em conta a questão da obediência e da agressão constante. Jessica Jones representa, em diversos momentos, uma mulher que tenta constantemente superar os traumas e marcas de um agressor.

O assédio chega no seu limite máximo. O vilão da história causa um terror e uma tortura psicológica que se equiparam aos de qualquer homem misógino, machista e deturpado. Mesmo que na série e na revista existam poderes sobre-humanos, o que vemos retratado e que nos faz debater é o papel do homem e da mulher. O fato de a série contar com uma participação feminina tão grande reforça ainda mais a questão.

no quadrinho ...

no quadrinho …

Killgrave usa sua capacidade para além de qualquer limite ético. Ele estupra, mas como se houvesse consenso. Ele mata, mas como se fosse um suicídio. Ele rouba, como se fosse uma doação. Sem dúvida ele extrapolou qualquer limite de sanidade. Sua sociopatia chega à níveis clínicos ímpares.

Pessoalmente julgo que o Homem Purpura tem, em algum nível, uma psicose chamada Erotomania (Síndrome de Clérambault), na qual o paciente é capaz de atos de total insanidade em nome da conquista do seu parceiro, que não corresponde afetivamente. Quem tiver curiosidade, o filme “À la folie… pas du tout” (Bem-me-quer, mal-me-quer), retrata de uma maneira muito interessante essa psicopatia, mas pelo lado feminino.

Este cenário e as temáticas têm me feito pensar muito sobre o papel dos homens na sociedade. O lançamento da série caiu muito bem com a proximidade da hashtag #meuamigosecreto. Se nenhum dos dois suscitar questões, talvez esteja na hora de parar para pensar perguntas como: O quanto somos responsáveis por sensações e sofrimentos que poderíamos evitar? O quanto somos abusivos em nossas ações e falas? O quanto reproduzimos o que temos de pior em nós, para mantermos nossas pequenas loucuras e desejos?

 poderia ser "vá buscar uma cerveja!" ou "pule dali"...

poderia ser “vá buscar uma cerveja!” ou “pule dali”…

PS: Já fomos criticados por não termos mulheres no nosso grupo. Isso sem dúvida dificulta debates como esse de hoje. Fica então o convite a você leitora, para escrever, e quem sabe integrar nosso time!

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4 respostas para Estupro, assédio e loucura: Reflexões sobre Jessica Jones e feminismo

  1. Jessica Jones é mais do que uma série de super-heróis, com violência, superpoderes e colantes brilhantes na tela. Ela tenta, nas entrelinhas, explicitar questões sérias da realidade. Talvez por isto, e pelo fato da protagonista ser uma mulher forte, sem precisar dizer que é forte, ou até mesmo provar que é-ela simplesmente é-, despertou minha atenção. Mas creio que em momento nenhum a série se compromete a fazer refletir sobre o papel do homem e da mulher, porque a Jessica não é feminista (e eu agradeço por ela não ser!). O que ela quer mostrar mesmo é a violência real, a violência psicológica e social que a mulher sofre nas mãos de muitos homens, de fato, machistas, mas não creio que esse problema esteja no cerne do casamento. A relação de homem e mulher neste contexto não é o problema, o problema é quando alguém subverte o teor das coisas, transforma-as em algo que não são para que os esquerdistas tenham algo em que se firmar para apregoar suas ideologias um tanto extremistas!

  2. Me fez lembrar dos jihadistas que recrutam mulheres francesas para a Síria, conforme um documentário da GloboNews. Mas existem vários exemplos próximos, como:
    – Sua mãe, irmã e esposa fazerem muito mais o serviço da casa que você;
    – Nossas namoradas e ficantes serem obrigadas a atender muito mais padrões de belezas do que nós;
    – Mulheres ganhando menos do que os homens exercendo a mesma função.
    São várias contradições naturalizadas; a série é feminista, sim, muito bem feita.

  3. Killgrave podia ganhar o prêmio de vilão mais aborrecido dos quadrinhos. Aquele papinho de “Você vai ter que me amar…” me lembrou a Felícia da ACME e quase estraga a série, não fosse o girls power nas cenas de lutas de Jess e Patsy e na participação da Claire… Não tem comparação com o bad Wilson Fisk e sem sombra de dúvida, a melhor série, continua sendo O Demolidor.

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