Super-heróis e guerras são uma combinação mais que tradicional em quadrinhos. No Brasil, a produção dos dois gêneros sempre foi bastante capenga. Pátria Amada é um esforço sério de mudança.

Guerra é algo que marca as pessoas de maneiras diferentes. Varia de quem somos e de como ela nos atinge. Para a maioria dos estudantes brasileiros, por exemplo, guerra é algo distante e, principalmente para os meninos, fascinante. E é fácil entender a origem disso: nosso imaginário de guerra é quase exclusivamente hollywoodiano e mesmo a cobertura jornalística de conflitos reais hoje tem ares cinematográficos.

Como nossa memória histórica não é lá grande coisa, a maioria nem sabe que já nos envolvemos em várias guerras. Quem conhece um caso ou outro, quase sempre tem certeza de que só fomos lá pra servir de bucha-de-canhão ou dar vexame — não se esqueçam da inglória Batalha das Toninhas. E boa parte da culpa é, sim, dos professores de História (entre os quais me incluo), que muitas vezes confundem o papel de desmistificar a história oficial com esculhambação.

Guerras civis são particularmente complicadas. Elas deixam marcas que custam muito a fechar. Você talvez nunca tenha feito a conexão (de novo, nossa memória histórica é bem ruinzinha), mas muito da percepção que tantos gaúchos ou paulistas têm de que deveriam ser povos à parte do Brasil está ligado à Farroupilha e à Revolta Constitucionalista. E o quê dizer da briga entre corintianos e palmeirenses, fruto de rixas internas da colônia italiana que tinham origem ainda nos conflitos durante a unificação da Itália?

Obviamente, nossa compreensão de guerra seria muito diferente se uma estourasse no nosso quintal. Os indicadores de violência até demonstram que, no mínimo, vivemos em situação de guerrilha urbana na maioria dos grandes centros. Mas, dada a aleatoriedade com que os alvos civis são produzidos, o grande público não entende que estejamos em pleno conflito — a não ser que você seja vítima, policial, criminoso ligado a alguma facção, morador de favela ou bairro pobre ou parente/amigo próximo de alguém nessas situações.
Uma guerra declarada teria alcance generalizado, nos afetaria a todos quase simultaneamente. E nos obrigaria a repensar nosso papel como cidadãos e pessoas, nossas lealdades, nossos propósitos. Em meio ao caos e à violência, teríamos que escolher entre a civilização e a barbárie, a coragem e o desespero, o perdão e a vingança, a justiça e o dever. E é muito difícil fazer a escolha certa quando errar pode significar a morte de alguém, principalmente a sua.

Com roteiro e arte de Klebs Júnior e arte-final de Wellington Diaz e Nelson Pereira,
Pátria Armada é a primeira publicação do
Instituto dos Quadrinhos. A série programada para 3 volumes tem como cenário um Brasil perfeitamente reconhecível para nós, com desenhos detalhados de lugares bastante conhecidos. A grande diferença está no passado: o golpe militar de 1964 só foi parcialmente bem-sucedido e, 30 anos depois, o país continua dividido por uma guerra civil. E os dois lados do conflito têm forças especiais, com soldados super-poderosos.

Klebs Júnior faz um trabalho bastante eficiente ao mostrar o cenário e apresentar resumidamente 30 anos de história em poucos quadros, sem quebrar o que deveria ser o ritmo natural da narrativa. (Há um ou outro ponto em que a solução não é tão eficiente, mas nada que realmente prejudique a leitura). E, a não ser que você tenha bons conhecimentos de história brasileira recente, provavelmente vai passar batido o fato de que o centro da resistência à ditadura militar seja São Paulo e não o Rio Grande do Sul. (Ou talvez as coisas tenham mudado muito ao longo dos 30 anos de guerra). A proposta de encaixar um Brasil real numa narrativa ficcional é razoavelmente bem-executada, menos artificial do que outras tentativas do gênero.


Mas a obra também tem alguns problemas. Um deles é o excesso de personagens. É muito provável que o sonho fosse produzir uma série de longa duração, que desse tempo de se desenvolver mais cuidadosamente todo o conjunto. Vão ter que se virar com 3 revistas que, juntas, darão algo em torno de 100 páginas. É pouco, menos que pouco, para se aproveitar um argumento desse tamanho. A história é claramente centrada em
Cristina, que é recrutada ainda no colegial e parece ter poderes psíquicos. O problema é que, fora isso, praticamente nada sabemos sobre ela. Não houve tempo para conhecermos sua história, sua visão, seu potencial. Outra personagem central é o
Coronel Venâncio, responsável pela unidade especial dos
legalistas (contra os golpistas de 64). Dele, só sabemos que carrega ressentimentos pesados por causa da guerra. A única história de origem que temos é a de
Guari, um índio com poderes elétricos, cuja aldeia foi massacrada pelos
federalistas. E há os (talvez) coadjuvantes diversos. Resumindo, personagens demais para páginas de menos.


Outro problema é o que já foi chamado de
“paradigma Kitty Pryde” (a tendência de representar a diversidade de maneira estereotipada apenas para mostrar que a diversidade está representada, sem que ela realmente tenha algum peso na composição do roteiro e das personagens).
Zeverildo, por exemplo, é um nordestino genérico, que tem sua identidade regional-cultural identificada pelo vocabulário e nada mais. Talvez sua história de origem ainda venha a ser mostrada. Talvez ele só tenha aparecido em situações em que nada mais poderia ser feito além de mostrar o sotaque. A impressão, por enquanto, é que sua função é só mostrar que os
legalistas são os mocinhos porque representam a pluralidade brasileira unida contra o autoritarismo. Mas
Cristina, que parece ser a personagem principal, é paulista, loira e tem olhos verdes. É possível que não exista nessa composição de personagens alguma intenção de afirmação ideológica sócio-cultural? Perfeitamente, mas, considerando a nossa dificuldade de diálogo entre setores sociais divergentes e o fato de que São Paulo tem experimentado manifestações (pequenas, mas barulhentas) de intolerância e separatismo, talvez seja um sinal de que a classe quadrinhófila também deva fazer uma busca pelo subconsciente e ver se estamos realmente livres dos preconceitos que se perpetuam na comunicação-de-massa.


Finalmente, existe a questão (não exatamente problemática) de se ter feito a opção de uma história de ação super-heróica. Aspectos mais dramáticos da vida em cenário de guerra são tratados superficialmente, apenas como parte do cenário, sem uma reflexão mais séria do que efetivamente seria um Brasil dividido por uma guerra de verdade. Não que se tenha fugido intencionalmente desse tema. Nosso imaginário de guerra é tão alheio que certas questões talvez nem tenham sido cogitadas no processo criativo. E também é claro que autor algum é obrigado a dar conta das inquietações políticas, filosóficas ou imaginativas de todos os leitores. O fato é que, como história de super-heróis,
Pátria Armada funciona. Como história de guerra, deixa a desejar.

O primeiro volume está nas bancas. Os outros dois podem ou não ser impressos, dependendo do resultado.
Pátria Armada tem um bom potencial para agitar a produção brasileira de quadrinhos heróicos. É uma questão de quanto investimento (tempo e dinheiro) a equipe de produção tem condições de fazer. A parte do dinheiro até que se resolve (
financiamento coletivo existe). Tempo e, principalmente, bom acolhimento pelo mercado já escapam um pouco do controle de quem quer que seja.
Curtir isso:
Curtir Carregando...
Sobre Quotista
Filipe Makoto Yamakami é historiador, professor, músico amador, twitólatra, monicólatra, etc.
E realmente precisa de um emprego que lhe permita pagar as contas.
@makotoyamakami
Pingback: | Quadro a Quadro