JEREMIAS E O PARADIGMA KITTY PRYDE: Diversidade (?) humana em quadrinhos

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O plano inicial era escrever isso há algumas semanas e publicar no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Comecei a escrever, mas, por uma série de razões, o fechamento foi adiado. E isso foi bom. Tive tempo de ler mais algumas coisas, amadurecer um pouco mais as idéias, conversar com mais algumas pessoas. Nada disso garante a qualidade do post, é verdade, mas você pelo menos pode ter a certeza de que não foi algo escrito às pressas só para não perder uma data importante.
Você pode estar se perguntando “o que esse japonês tem na cabeça para achar que pode escrever sobre racismo e quadrinhos?” e eu entendo a desconfiança. De fato, exceto por um ou outro caso de insultos gratuitos que escuto quando ando na rua ou do bullying sofrido nos tempos de escola, minha percepção do racismo é essencialmente teórica e/ou de segunda mão, assim como minha percepção da situação de qualquer minoria. É por isso que não vou discutir o racismo em si, mas como o paradigma da representação esvaziou essa discussão nos quadrinhos.

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Já demonstrei em outro momento que os X-Men só se tornaram um sucesso quando a Marvel assumiu os heróis mutantes como os representantes da diversidade. E também lamentei que essa diversidade fosse diluída na representação de algumas características apenas, a maioria sem relevância para o desenvolvimento de personagens e roteiros. Para mim, Kitty Pryde é o caso mais emblemático, tanto que é ela o meu referencial para qualquer representação de minorias em quadrinhos. Não sei como anda a personagem hoje — já faz muito tempo que não leio nada da continuidade regular —, mas eu gostava muito do clima de leveza que ela ajudava a construir nas histórias nos anos 80. Só uma coisa me incomodava: a cada três ou quatro histórias, ela falava de seus parentes mortos no Holocausto.
Eis o que chamo de “paradigma Kitty Pryde”: apresenta-se uma personagem como parte de um grupo étnico, racial, social — etc — específico, demonstra-se esse pertencimento a partir de sinais inequívocos (roupas, gíria, aparência, etc) de um modo que nos faz crer que esses elementos são fundamentais para compreendermos a personagem, mas nada disso é importante para o desenvolvimento da história. (Ok, para ser justo, o discurso de Kitty uma vez salvou Noturno de ser linchado por um pequeno grupo não-organizado de preconceituosos quando ele já estava muito debilitado por conta de uma batalha contra Nimrod, mas é a única lembrança que eu tenho do discurso sobre o Holocausto contribuir para o roteiro).

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kitty-pryde-mutant-and-proud[1]É verdade que os quadrinhos também têm aquilo que no rádio se chama de audiência rotativa e, portanto, certas informações precisam ser repetidas de tempos em tempos para que o público novo saiba com quem está lidando. Também é bem provável que a única maneira de identificar uma judia americana não-ortodoxa adolescente no meio da multidão seja ela mesma se declarar judia. Então, só sabemos que Kitty é judia porque ela diz que é. E sempre do mesmo jeito: falando do Holocausto. (Enquanto buscava imagens para ilustrar o post, descobri que os roteiristas aparentemente conseguiram romper com o paradigma Kitty Pryde ao menos em relação à própria).
Antes que alguém comece a me xingar, não estou dizendo que o Holocausto deve ser esquecido ou que ele não deva ser mencionado em histórias-em-quadrinhos. Menos ainda estou dizendo que judeus devam guardar a memória sobre o Holocausto para si e não compartilhá-la com os outros. O que estou dizendo é que o falar sobre o Holocausto não deveria ser o único elemento de identificação de uma personagem como judia.
Jewish-World-comics-part3[1]O paradigma Kitty Pryde é produto do interesse ou da necessidade ou, ainda, da pressão por um leque de personagens que represente com maior realismo a diversidade humana. O grande problema é que ele limita a questão da representação da diversidade à simples presença de personagens diversificadas. Talvez ele exista exatamente por isso, pelo entendimento raso de que ter personagens judias, negras, homo-sexuais, paralíticas e qualquer outra coisa em seu elenco principal seja suficiente para encerrar o problema da representatividade.

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Pensemos o Jeremias. Ele faz parte do grupo carinhosamente chamado de secundários, o elenco de apoio da Turma da Mônica. Além da figuração, os secundários são usados nas histórias conforme a necessidade do roteiro (e muito da preferência do roteirista) e, ocasionalmente, têm suas próprias histórias de miolo (aquelas histórias mais curtas que estão no meio da revista). Por isso, cada secundário tem um conjunto de características próprias, essenciais para o desenvolvimento das histórias. Menos o Jeremias.
Jeremias é negro e usa boné. Você provavelmente descreveria a personagem dessa maneira. Mas, se considerarmos os elementos de identidade pela quantidade de histórias em que ele aparece, a descrição seria muito diferente: Jeremias usa boné, é membro do clubinho e da turma do bermudão e, muito raramente, é negro.

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Caso você não esteja familiarizado com a produção regular da MSP, explico. As histórias-solo de Jeremias quase sempre giram em torno de seu boné. Como membro do clubinho, ele quase sempre faz figuração. A turma do bermudão é um coletivo identitário, os quatro integrantes são indissociáveis. Isso limita muito o leque de possibilidades de humor. As histórias em que Jeremias é afirmativamente colocado como negro são, na esmagadora maioria dos casos, sobre diversidade étnica, cultural ou religiosa, nas quais o fundamento não é o humor, mas a educação. E mesmo nessas histórias, ele não é o protagonista.“O Novo Presidente” (Cebolinha #30, Panini, novembro de 2011), em que Jeremias cumpre o papel de Obama na disputa pela presidência do clubinho é uma raríssima exceção.

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Não parece que Jeremias seja vítima de racismo. Mas, que ele é negligenciado, não há dúvida. O próprio Mauricio de Sousa, em algum momento na década passada, apresentou o desenho de uma nova família de personagens negras nordestinas, até hoje sem nome e ainda sem nenhuma perspectiva de lançamento. É possível que o projeto até já tenha sido arquivado. Na época, a comunidade monicólatra no Orkut se dividiu. Se a idéia era abrir espaço para personagens negras, por quê não aproveitar melhor o Jeremias?

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A ausência de uma abordagem afirmativa de Jeremias é fácil de ser entendida no universo mauriciano: a ênfase das histórias está no humor e a verdade é que é muito difícil fazer humor com algo tão delicado quanto a questão racial. Portanto, Jeremias, por não ter nenhuma característica que sirva para alavancar o humor, acaba entrando para o time B dos secundários.
Imagem10Mas como se explica, então, os outros secundários? O fato é que, a não ser pelo quarteto principal, as personagens mauricianas mais antigas não tinham identidade tão desenvolvida. O Franjinha inventor, o Titi paquerador ou a Denise descolada, entre outros, foram ganhando identidade — no caso da Denise, até mesmo um desenho fixo (o roteirista Emerson Abreu contou quase 20 desenhos diferentes da personagem ao longo de décadas de histórias) — ao longo de muitos anos e de maneira espontânea, conforme Mauricio e sua equipe desenvolviam roteiros e fixavam na memória aspectos atribuídos às personagens em certas histórias. Os secundários mais recentes já foram concebidos com características específicas: o cadeirante Luca, Dudu que não quer comer nada, Nimbus e sua obsessão por meteorologia, etc. E, assim como seus companheiros mais antigos, eles também tiveram sua identidade mais desenvolvida e até deixaram de lado algumas de suas características originais — exceto o Do Contra, fazendo jus ao nome.
papa-capim[1]Justiça seja feita, Jeremias não é o único que caiu para a segunda divisão dos secundários e, comparado com alguns, ele até que está bem. Manezinho, seu companheiro de turma do bermudão, nunca teve uma história-solo. Tikara e Keika, criados para comemorar o centenário da imigração japonesa, apareceram só para a comemoração e numa história curta da Turma da Mônica Jovem, que não é considerada parte dos cânones por um número considerável de leitores. Tati, portadora de síndrome de Down, só apareceu em uma história regular e em alguns quadros de histórias especiais (revistas para distribuição que eventualmente também são encartadas nas revistas regulares) sobre direitos humanos, direitos da criança e inclusão social. O lisboeta Alfacinha foi apresentado e sumiu. E os Amazônicos? Você talvez nem saiba que eles existem.
Também é necessário pensar que o paradigma Kitty Pryde não se aplica totalmente ao Jeremias, pois, embora vez ou outra a Turma da Mônica se proponha a discutir questões sociais, inclusive o racismo — a clássica “Os Azuis” (Mônica #15, Abril, julho de 1971) é a que trata o tema de maneira mais aberta —, Jeremias jamais foi apresentado como o “legítimo representante da raça negra” ou como “a personagem com quem as crianças negras podem se identificar”. Não é esse o propósito da turminha.

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Seria o caso, então, de transformar Jeremias no porta-voz da consciência negra dentro das publicações da MSP? (Os amigos filósofos que me perdoem — sei que o termo “consciência” não é, filosoficamente, o mais adequado aqui, mas o uso foi consagrado pelo senso comum). Se for possível fazer isso sem destoar do modo mauriciano de se contar histórias, sim.
Acredito, contudo, que mais interessante ainda seria se Jeremias simplesmente ganhasse mais espaço, com a mesma naturalidade que os outros secundários foram desenvolvidos. Se isso acontecer, ele pode não vir a ser um porta-voz da causa da igualdade, mas seria uma representação importante daquilo que existirá quando realmente houver igualdade. Afinal, ainda quero acreditar que a Turma da Mônica nos fala de uma infância possível e, no melhor dos mundos, isso significa crescer olhando para as pessoas como pessoas. Simples assim.

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Sobre Quotista

Filipe Makoto Yamakami é historiador, professor, músico amador, twitólatra, monicólatra, etc. E realmente precisa de um emprego que lhe permita pagar as contas. @makotoyamakami
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3 respostas para JEREMIAS E O PARADIGMA KITTY PRYDE: Diversidade (?) humana em quadrinhos

  1. Matheus Wesley disse:

    Concordo em gênero,número e grau !

  2. Pingback: PÁTRIA ARMADA: A guerra dos heróis (?) brasileiros | Quadrinheiros

  3. Excelente POST MEU AMIGO…aqui quem fala é o pedagogo e desenhista…José Eduardo…de Paulo Afonso-Bahia…meu tema de monografia foi “a valorização da cidadania nas histórias em quadrinhos, voltadas para o público infanto- juvenil brasileiro”…,muito a ver com a temática!

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