Se vivêssemos em um mundo ideal o jogo democrático funcionaria da seguinte forma: haveriam partidos com projetos políticos claros e bem definidos. O povo, consciente de que o voto é o principal meio pelo qual exerce sua soberania, se informaria por meio da imprensa, que seria isenta e transmitira informações relevantes e verdadeiras. Com base nessas informações confiáveis, o povo escolheria não entre candidatos, mas entre os projetos apresentados, aquele que seria o melhor para seu País.
Mas esse mundo não existe. Não há projetos, há disputa pelo poder. A imprensa não informa, mas explicitamente faz campanha pró ou contra um determinado candidato ou governo. O povo não se informa, mas é manipulado.
Não, não estou descrevendo o atual momento em que vivemos, estou descrevendo o mundo de Transmetropolitan! Já falamos sobre essa HQ em detalhes aqui e a Dissecamos no vídeo abaixo. Não há como ler a obra sem traçar paralelos com o que estamos vivenciando hoje.
O futuro distópico descrito por Warren Ellis em Transmetropolitan se parece mais e mais com o nosso. Lá as pessoas se informam por meio de feed de notícias que pasteurizam as informações para serem consumidas de maneira rápida.
O que é muito parecido com o modo como informações são consumidas via facebook: migalhas de informações distorcidas acompanhadas de imagens para serem facilmente assimiladas e imediatamente compartilhadas, que têm o objetivo de convencer sobre algo (seja uma proposta, o voto em um candidato ou qualquer outra coisa) um público que não se preocupa em ler mais que três linhas de um texto.

Típica imagem compartilhada no Facebook. Vendo essa imagem você pensaria que a Dilma vai acabar com os quadrinhos! Informe-se melhor aqui.
Mal informadas, as pessoas são levadas a juízos errôneos. Mal informados, qualquer debate é incapaz de ultrapassar o nível da polêmica e chegar ao ponto onde são discutidos argumentos. Mal informada, qualquer pessoa é incapaz de justificar sua posição e tudo se resume a “quem não concorda comigo é burro”, “se você concorda comigo você está certo”, “se você discorda está sendo manipulado”. Lendo os comentários nessas imagens é possível ver o tamanho da desinformação gerada. Não há argumentos, há afirmações vazias.
No limite, quando não há mais argumentos válidos, ou quando todos foram refutados, o último recurso de um idiota é alegar que estão cerceando sua liberdade de expressão. E sim, esse idiota não entende que a liberdade de expressão dele não pode ferir outros direitos ou o direito de outros.
O futuro de Transmetropolitan é perigosamente parecido com nosso presente. Veja o que Spider Jerusalém (o jornalista protagonista da HQ) tem a nos ensinar sobre política e jornalismo:
1. Sobre nossa atitude como seres humanos diante da política:
“As únicas ferramentas de verdade que temos são nossos olhos e nossas cabeças. Não é o ato de ver somente. É compreender corretamente o que vemos”.
2. Sobre a responsabilidade de um jornalista (ou de qualquer pessoa que queira tornar sua opinião pública):
“Hoje posso dizer o que eu quero quando quero. Então preciso ter certeza, mais ainda do que antes, de aquilo que eu digo vale a pena ser dito. Senão é só punhetagem minha”.
3. Sobre o ato de votar:
“Você quer saber sobre votar. Vim aqui te falar de votação. Imagine você trancado numa imensa boate subterrânea lotada de pecadores, putas, maníacos e coisas inomináveis que estupram pit bulls por diversão. E que não te deixam sair até todos votarem no que vão fazer esta noite. Você quer relaxar e assistir à “Reserva do Partido Republicano”. Eles gostam de fazer sexo com gente normal usando facas, armas e novos órgãos sexuais que você nem sabia que existiam. Então você vota na televisão, mas todos os outros, até onde sua vista alcança, votam em te foder com canivetes automáticos. Isso é votar. Não há de quê”.
4. Sobre o público que consome notícias:
“Claro que somos bastardos. Somos o público, o povo que vota em boquetes e novelas, o povo que acredita ao pé da letra nas notícias. Somos o povo que joga lixo no chão. Somos os estupradores eventuais, os porras-loucas vadios, os pais que todo filho lembra para sempre, a garotada que espanca velhos até a morte por terem cheiro esquisito. Somos o povo pra quem você falou o tempo todo. Somos o povo pra quem você grita aos guinchos toda semana em sua coluna. Mas nós não lemos porra nenhuma de jornal. Somos aqueles que só te veem na tevê ou pegam a versão aguada que os sites de feed citam. Nunca escutamos sequer uma palavra sua. Somos o seu público”.
Nota: nesse momento da HQ Spider está tendo uma alucinação em que o público para qual ele escreve fala com ele. Então, no fundo, é Spider falando com ele mesmo.
5. Sobre revoluções:
“Toda revolução tem um furo, seja grande ou pequeno. E ele tem um nome. Gente. Não importa o quão grande seja a ideia em torno da qual as pessoas se reúnam. Elas são pequenas, fracas, custam pouco e vivem com medo. São as pessoas que matam as revoluções”.
Não gostou? Aqui vai mais uma do Spider, de brinde:
“Tudo o que eu posso fazer é dizer a verdade”
Spider Jerusalém é um parresiasta, aquele que pratica a parrésia – ainda que exerça sua atividade mais pela escrita que pela fala. Foucault nos diz que:
“Parrésia é um tipo de atividade verbal na qual aquele que fala tem uma relação específica com a verdade através da franqueza, uma certa relação com sua própria vida através do perigo, uma reta relação com ele mesmo e outras pessoas através da crítica (…), e uma relação específica com a lei moral através da liberdade e do dever. Mais precisamente, parrésia é uma atividade verbal na qual aquele que fala expressa sua relação pessoal com a verdade, e arrisca sua própria vida pois ele reconhece dizer-a-verdade como um dever para melhorar ou ajudar outras pessoas (e a si mesmo). Na parrésia, aquele que diz usa sua liberdade e escolhe a franqueza ao invés da persuasão, verdade ao invés da falsidade ou silêncio, o risco da morte ao invés da vida e da segurança, crítica ao invés da bajulação, e dever moral ao invés do interesse próprio e apatia moral.”
Ou seja: o ato de dizer a verdade não importando as consequências.
Você é capaz disso? É capaz de compreender a realidade corretamente e dizer coisas relevantes? Tem coragem pra isso?
É o que Spider Jerusalém nos ensina sobre política e jornalismo.
No caso de reclamações favor dirigir-se ao senhor Warren Ellis. Você pode conhecer um pouco mais sobre o autor e sua obra no vídeo abaixo:
Se você gosta do selo Vertigo inscreva-se no nosso curso sobre a Vertigo! Detalhes aí na barra lateral do blog e também aqui:
Digo e repito: Transmetropolitan é uma obra-prima visionária e que deveria ter o verdadeiro reconhecimento que merece.
Sem dúvida!
Ellis tornou-se um dos meus escritores favoritos há alguns anos. Não acredito que demorei tanto tempo para descobrir Transmetropolitan.
Longa vida ao genial “Spider”.
Ele foi baseado nesse cara aqui: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hunter_S._Thompson
Obrigado. Não me tinha apercebido o quanto Spider Jerusalem é fisicamente parecido com Foucault.
Nem eu! Mas realmente…
Foda demais. Meus sinceros e efusivos parabéns.
Obrigado!
Muito bom. Buscarei mais informações sobre essa obra. Abraços!
Leia e vc não se arrependerá!
Ótimo post! Pena que o leitor tenha que vender seus órgãos para conseguir comprar a série Transmetropolitan da Panini, se é que ela será publicada integralmente por aqui.
Ao que tudo indica será sim, Edson… mas infelizmente nunca se sabe. Sem querer fazer propaganda, mas comprei as minhas na FNAC, pelo menos agora eles estão mantendo uma média de 40% de desconto nos quadrinhos… para conseguir tem que garimbar muito, pagando o preço de capa realmente não dá.
Há muito que não leio um texto tão didático e ao mesmo tempo tão carregado de verdade e sensibilidade.
Não vende nada, mas despertou em mim uma enorme curiosidade sobre Transmetropolitan, apesar de saber que se trata de apenas uma das leituras possíveis da obra.
Gosto das colocações, dos desafios, da crítica social absurdamente pertinente a nossa sociedade nessa realidade hipócrita em que vivemos.
Corajoso porque não posiciona ninguém, cobra apenas coragem de sair da mesmice comoda, da hipocrisia que apenas concorda para poder participar.
Obrigado, John. É esse o grande desafio: esforçar-se para fazer uma compreensão correta do mundo em que vivemos.
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pessoal voltando com a polemica da resolução do conanda no inicio,de resto concordo com o que você falou,esse lance do conanda bem como as eleições acabaram com muitas amizades,pessoas brigando por causa de politica porque não suportam que fale mal do seu candidato ou ideologias,seu sinceramente acho que a resolução do conanda foi um tiro no pé feito pela parte mais conservadora politica que quer são falsos moralistas(no sentido literal da palavra) porque parece que criamos um hibrido estranho que ainda vai gerar muitos problemas,ainda vivemos em um país onde não se aceita opinião ou você está do meu lado ou do lado inimigo,pessoas são punidas e tem sua vida profissional destruída simplesmente por dar sua opinião sobre um assunto,as pessoas parece apenas se tornaram mais intolerantes sobre criticas e tudo virou sagrado dês que seja da sua ideologia
Sim, as pessoas ainda têm uma dificuldade imensa em debater, porque só há debate de verdade quando os dois lados – ou quem acompanha o debate – estão dispostos a mudar de ideia se os argumentos do outro lado forem realmente melhores. Mas aí é que está: nem sempre o melhor argumento está pautado na verdade, por isso o Ellis chamar a atenção tantas vezes para o fato de que existe uma verdade é tão importante.
lembrou a estrategia do Gramsci sobre o controle e manipulação
Excelente análise. Parabéns pelo artigo
Sou um grande admirador da obra e o post faz total jus a ela, sem dúvidas o Quadrinheiros é o melhor site de quadrinhos que acompanho atualmente.
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