A voz do dinheiro: Alan Moore, feitiços e sacrilégios

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Dinheiro é um fenômeno mágico. Porque não há nada demais nele”, enunciou o mago barbudo que conta histórias. A ocasião era a queima de uma nota de 1 pound, um ritual macabro numa era de deuses de papel e altares de telas brilhantes.

Diz Alan Moore: […] se você pegasse todo o ouro do mundo, você faria um cubo cujos lados teriam a área de uma quadra de tênis de Wimbledon. Não há tanto ouro. Todo o dinheiro é uma idéia na qual todas as pessoas aceitam, e por causa disso, ele é real – não importando o fato de não haver nada ali.”

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Encare uma nota, uma moeda. O que eles são? Uma série numerada. Desenhos de heróis, paisagens e símbolos pintados numa curta tela de madeira refinada mil vezes. Emblemas a serem vistos, compartilhados e venerados. O valor do dinheiro emana da fé na casa que o produz. Levam e trazem o alvo do desejo e necessidade, do vulgar e do solene, do sagrado e do profano. Fetiche ou divindade. Meio e fim.

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Separadas, as notas têm um valor simbólico. Mas juntas… Ora, juntas eles narram uma história. A semelhança com os quadrinhos não parece mera coincidência. Vejamos…

Os quadrinhos são uma combinação de incontáveis forças artísticas, como as pinturas, e literárias, como os romances. Cultas, como os museus, e banais, como os folhetins. Quadrinhos têm influências laicas e sagradas, espalhadas pelos 6 continentes e séculos de histórias. Reunidas no século XX essas forças expressam, sem reservas, as mitologias que qualquer sociedade exige como depósito de verdades éticas e morais. São mitologias em quadrinhos para todos os gostos, dos mais libertários aos mais conservadores.

 

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O dinheiro, bastante parecido, canaliza as forças de um Estado, este organismo vivo que age como manifestação do desejo de todos. O Estado, assim como as leis, expressa os ditames e valores daquilo que cada cidadão reconhece como sendo seus, uma projeção da identidade coletiva. A moeda, documento oficial desse Estado, traz consigo os ideais que uma nação congrega, tal como os quadrinhos (única diferença sendo o caráter não-estatal dos heróis de quadrinhos).

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Exceto talvez pelo Capitão América

Em outras palavras, do Império à República, as cédulas narram o cenário e os heróis de uma história:

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Como símbolo do trabalho e desejo de um povo, o dinheiro é carregado de emoções e valores de uma época. Se estes valores não são evidentes no uso do dinheiro, certamente eles são evocados quando furtados. Especialmente quando o autor do crime é um agente do Estado.

Quando o representante delegado pelo povo rouba, mente e conspira, a fé esmorece. A moeda – portanto a história que ela representa – é subtraída de sua força. A fraude e o crime insultam não apenas a confiança daqueles que delegaram um agente do Estado, mas a coletânea de preceitos simbolizados pela nota. O crime é uma violação do senso de equilíbrio e justiça, um rasgo na ordem dos vultos que devem respeitados, aqueles impressos no papel que todos concordamos em honrar e venerar.

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“Ora, que desonra à nobre garoupa, Sr. Deputado!”

Alan Moore chamou a experiência de queimar uma cédula de ato simbólico, mágico, afinal indicava uma ofensa à fé nela depositada. Queimar aquela nota significava recusar o valor que as pessoas atribuem a um totem coletivamente acatado. Ou seja, um ato herético, um sacrilégio, um tabu.

O que, convenhamos, às vezes é bem divertido

O que, convenhamos, às vezes é bem divertido

Em 1930, Sigmund Freud chamou de “Mal-estar da civilização” o processo mental de insatisfação dos desejos inconscientes perante o conjunto de regras sociais, os totens, “monólitos”, “pedras” invisíveis onde estão insculpidas as condutas que produzem sujeitos dóceis, a “sagrada família” referida por Marx e Engels.

Em outras palavras, o mal-estar (vulgo, neurose) é resultado de uma incongruência, uma tensão, um descompasso entre as vontades mais básicas de satisfação pessoal e aquilo que as leis, as virtudes nacionais, as regras das instituições como família, Igreja e trabalho definem como corretas. Quanto mais desafinado é o inconsciente com o mundo externo, maior é o mal-estar.

O diagnóstico é claro:  overdose de Tati Quebra-Barraco

O diagnóstico é claro: overdose de Tati Quebra-Barraco

Ora, onde entram o dinheiro e os quadrinhos? Ambos, analogamente, exercem a função dos monólitos invisíveis de Freud uma vez que narram histórias e indiretamente celebram visões de mundo, do Estado ou não. E mais além, ao mesmo tempo que ocupam a função de estandartes de uma certa ordenação, agem como “analgésicos” do mal-estar quando este se acentua no cotidiano. Não é por acaso, o marketing é justamente o setor que explora o mal-estar latente do consumidor e sugere uma solução através da compra de alguma mercadoria que promete a solução.

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Putamerda, Velho! Então todo quadrinho e cédula fazem de mim vítima de um sistema vil, sujo, sufocante e opressor?!? Estou fadado a uma vida miserável como um escravo voluntário da Matrix??

Bom, não. Se não fossem os quadrinhos, nem eu, que escrevo, ou você, que lê e entende, chegaríamos a esta constatação. Além disso, o dinheiro também permitiu que tubos de metal com mais de uma tonelada levassem milhares de pessoas de um continente a outro em menos de 15 horas todos os dias.

Arrisco, em se tratando de dinheiro e quadrinho, ambos narrativas mitológicas, há duas opções de vida: ser um sacerdote ou um feiticeiro. Ambos só têm poder na medida que são fluentes no uso e domínio mesmos livros e linguagens. Ou como arrematou o bruxo barbudo:alanmoorelitho_lg

“[…] Muitos mágicos parecem gastar muito de seu tempo e energia na tentativa de ganhar dinheiro – o que sempre pensei ser um pouco demagógico. Se você olhar para a autobiografia de [Aleister] Crowley, muito de seu tempo é gasto tentando conseguir com que alguma viúva rica se torne logo em sua dama de vermelho, que vai lhe dar muito dinheiro. Austin Osman preferiu, por outro lado, viver na pobreza durante toda sua vida. Ele era um mágico melhor que Crowley, sob vários aspectos… um artista maravilhoso. Alguém disse a ele, ‘Se você é um mágico tão poderoso, por que não fica rico?’ E ele respondeu, ‘Você realmente acredita que eu usaria o que eu posso fazer para atrair centavos?’”

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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9 respostas para A voz do dinheiro: Alan Moore, feitiços e sacrilégios

  1. Olavo Lima disse:

    é fácil para o marx falar vivia as custas do pai dele (isso mesmo molecada) e nunca ajudou nenhum filho dele uahua só coloquei esse post porque sei que vai todo mundo ficar p da vida e comentar uahua

    • Velho Quadrinheiro disse:

      Olavo, não conheço muito essa história, sério!
      Onde posso ler isso?

      Se lembro bem o Rousseau era um pai desnaturado exemplar! Deixou os filhos no orfanato e se mandou.

      Fofocas históricas! Contigo acadêmica! =P

      • Olavo Lima disse:

        bom tem a empregada que o marx engravidou mas nunca assumiu o filho e 111 anos depois os historiadores comprovaram que era filho dele e pior marx sabia disso mas nunca ajudou não,ele é apenas um de uma lista de filhos de marx mas o único historicamente afirmado como filho de marx – aqui sobre a mãe do suposto filho de marx http://en.wikipedia.org/wiki/Helene_Demuth

        o amigo de marx e companheiro de teorias Friedrick Engels chegou a ajudar o filho dele sabendo da verdade(que alias ajudou marx também financeiramente diversas vezes) essa parte da vida de marx pode ser encontrada em biografias o grande problema (como a maioria dos lideres messiânicos) é que nos países onde ele é idolatrado na maior parte das vezes censuram essas coisas,demorou muito por exemplo para a biografia de che guevara feita pelo amigo dele chegar apropriadamente no brasil isso se deve aos diários dele que tem muitos comentários racistas e homofóbicos

        não acho que isso desvalorize as ideias dos dois,eles tiveram boas ideais mas é só para mostrar que eles são apenas pessoas que podem estar certas e erradas,ninguém é infalível e espero não estar ofendendo ninguém poder dizer essas coisas

    • Hike Jhp disse:

      Fiquei sabendo que ele, no fim da vida, teve que se contentar em viver da herança recebida pela mulher já que se recusava a trabalhar em um emprego “medíocre”.

  2. Excelente post. Fazia tempo que não aparecia um tão bom.

  3. Pingback: Guerra dos Roteiristas E06 – Alan Moore X Neil Gaiman | Quadrinheiros

  4. giovani disse:

    olavo tenho uma nota de 100 cruzeiros

  5. Henri Galvão disse:

    Muito bacana o texto. Vi o documentário do Alan Moore há alguns meses, e achei simplesmente sensacional. Não sabia dessa dele queimar dinheiro, mas não é de espantar.

    E toda essa questão do dinheiro ser uma crença compartilhada me levou inevitavelmente a lembrar de um livro que li há pouco: Sapiens, de Yuval Harari. No caso, ele chama essas ideias de ordens intersubjetivas, fazendo uma diferenciação muito interessante – e fundamental – entre estas e as ideias objetivas e subjetivas.

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