O poder dos uniformes: estética, biologia e pressões sociais

(Atenção: este post é uma viagem total, delírio desocupado, sem qualquer fundamentação científica, pura digressão. É longo, mas respira fundo, dê uma chance pra ele)

Nessa altura da vida certamente você já não pensa sobre o assunto, afinal você está aqui, lendo um blog de textos não muito simples, que fala sobre quadrinhos. Mas como você reconhece os heróis?

Como você sabe quem são os heróis das histórias? Se você gosta de quadrinhos pode numerar com precisão seus heróis preferidos ou você sabe quais são os itens que o caracterizam, certo? A associação é límpida, automática.

Mas por quê? Como isso foi possível?

Aqui sugerimos uma resposta: é por causa do uniforme.

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Os uniformes têm uma função essencial não só nos quadrinhos, mas na maneira como interpretamos o mundo e as pessoas. Quadrinhos são apenas um canal de exploração desse “vocabulário” que dedica a esse traço visual um espaço especial. Por acaso esse espaço é a melhor mídia do mundo, prontofalei.

Mas para explicar a importância dos uniformes vamos por partes. Só pedimos uma coisa: se aceitar as premissas, aceite também as conclusões. (Ou não)

1 . Determinação biológico-evolutiva

Dentro de todo ser humano existe uma atração ao visual, um fascínio à “beleza”. Não, não estamos falando só de atração sexual ou de eugenia, pureza de “raça” nem nada do tipo.

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Esperamos que Leni Riefesthal leve o prêmio de melhor filme no Festival de Cinema do 8º círculo do inferno.

Mas reconhecemos que existe uma conexão entre os nossos gostos estéticos e certos fatores evolutivos. Essa relação é uma das coisas que nos definem enquanto espécie. Ou de forma mais simples (?), somos biologicamente determinados a gostar mais de certas coisas do que outras, esteticamente falando. Se não apenas gostar, temos algum mecanismo maluco no DNA que nos impele a ser mais simpáticos a algumas imagens em detrimento de outras.

Todos os comerciais de cerveja em apenas 46 cromossomos

“Mas eu quero Fanta!”  – “Não, Guaraná”, disse o DNA

Em muitos casos esses padrões são relativos, pessoais, subjetivos demais para definir uma regra. É essa subjetividade que garante nossa diversidade enquanto espécie (o que você acha atraente no sexo oposto não é necessariamente o mesmo que pensam seus amigos, graças ao bom Pai).

Mas há certos itens visuais que invalidam qualquer ressalva e nos impulsionam à empatia.

Duvida? Olhe bem para a foto abaixo:

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Gael Garcia Bernal funciona bem porque é um sujeito de traços excepcionalmente normais em qualquer padrão do mundo.

Agora esta:

Ana Claudia Talancon parece o equivalente feminino idêntico do Bernal

Ana Claudia Talancon parece o equivalente feminino idêntico do Bernal

Agora olhe para esta:

Agora pense, honestamente, qual das três gera mais afeição, ou qual você tem menos ressalva em aceitar como “simpática”?

Você pode até achar o Gael um cara bonitão, a Ana Claudia Talancon belíssima ( o/ ) ou achar a ideia de bebês um porre (choro, fralda, pura encheção de saco), mas a imagem de um bebê aciona um arsenal de instintos de empatia e proteção ou, fundamentalmente, afeto. A qual dos três você jamais diria não? Pronto, evolução falando. A biologia reagiu à imagem.

2 . A adolescência e a necessidade de rotulação

Tente lembrar da sua infância e início da adolescência, seu ambiente escolar, por volta dos 12 ou 13 anos. Vou arriscar e dizer que dali pra frente foram anos difíceis. O colegial foi um inferno, falar em voz alta, uma tortura. Agora tente lembrar daquilo ou das pessoas que te deixavam com medo ou faziam odiar cada manhã da sua pouca vida de até então.

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Para efeitos de compreensão, esses cu%#*@s

Brincos, tatuagens, cortes de cabelo, jeito diferente ou específico de se vestir… Certamente havia algo naquele ou naquelas pessoas que os marcavam como “opressores” do seu cotidiano, afinal você acabou de lembrar qual era. Claro, o corte de cabelo diferente não era a causa, mas certamente identificava o filho da puta.

Sem falar do cheiro

Sem falar do cheiro

Vou arriscar de novo e dizer que foi ali que você começou a gostar mesmo de heróis de quadrinhos (ou de rock`n roll, ou de Menudos, ou de colecionar selos, não vamos julgar ninguém). Mas por quê? Exatamente pela mesma razão que você odiava o pulha da escola. Foi o poder das reticências daquilo que não era sabido. O pulha usava o “uniforme” de pulha, e para fins de cotidiano nada mais importava. O contexto da vida do cara não despertava nenhuma simpatia. Era o sujeito que se vestia “daquele” jeito, ou fazia “aquela coisa”.

Em suma, Buddy Revell

Em suma, Buddy Revell

E os heróis? Os heróis são “aqueles” que vestem “aquelas” roupas apertadas e coloridas. Pronto, rotulação automática. O contexto é irrelevante (Gotham City, Metrópolis, contextos fictícios). Quem dá o significado de cada um é o leitor.

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Essa rotulação é o que estou chamando de “poder das reticências”. O uniforme ou os símbolos de expressão estética (tipos de roupas, cortes de cabelo, tatuagem, capas, botas, máscaras) preenchem aquelas lacunas de informação que ignoramos, afinal é impossível saber tudo sobre todo mundo, motivações, contextos. Isso é tão natural que nossas sociedades criaram mecanismos e instituições que historicamente se aproveitam desse impulso de rotulação inconsciente.

Nos vídeos do Poder do Mito, Jospeh Campbell lembra bem o significado ritual do jovem que se alista nas forças armadas. Ele deixa o seio e conforto da família e veste um uniforme. Desse momento em diante ele torna-se outra coisa, passou por uma metamorfose, uma espécie de saída da crisálida.

Um ano de pura diversão

Um ano de pura diversão

Do ponto de vista do jovem ele incutiu importância e sentido a uma existência que até então era confusa e desorientada. Foi uma transformação externa que provocou uma mutação interna. É tão diferente do jovem que assume uma estética mais “rebelde”?

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No caso, sem causa?

3. itens do uniforme

Aqui, chamam a atenção os itens que compõem esses uniformes, surpreendentemente recorrentes: botas, couro, capas, cordas, correntes, cores fortes, lisas (preto, branco, verde, vermelho, azul), quase sempre são trajes que acentuam o traço “muscular” dos personagens, tudo bem olímpico, bem apolíneo.

Apolíneo= Deus Apolo

Apolíneo= Deus Apolo

Um desenhista é o sujeito mais habilitado para descrever, mas genericamente diria-se que os uniformes denotam (ou extrapolam) o aspecto “rígido” do corpo, a força física, a velocidade, agilidade, e a simetria.

Mais algumas imagens do Alex Ross e ganhamos o bingo

Mais algumas imagens do Alex Ross e ganhamos o bingo

Mas por que o uniforme justo, o couro, as botas?

Em 1980, a ensaísta americana Susan Sontag publicou o ensaio “O Fascinante Fascismo”, capítulo do livro Sob o Signo de Saturno. Formidável livro sobre a estética nazista, lá é descrito por que tantos jovens na Alemanha da década de 1930 se alistaram na Wermacht ou viam com tanto entusiasmo os oficiais da SS. Segundo Sontag, a imagem do uniforme alemão, imponentes trajes negros, suscitava uma misto de força, medo e atração libidinosa. Assim, um fascismo fascinante, difícil de se resistir antes do início da 2a Guerra. O fascínio suplantava o senso crítico do jovem que aspirava ser algo mais do que ele era.
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Isso quer dizer que heróis de quadrinhos e uniformes de governos totalitários são a mesma coisa?? Não! Calma! Não jogue fora seus gibis!! Só quer dizer que num momento singular da história houve aqueles que canalizaram a atração pela beleza e fizeram disso um projeto de hegemonia racial e anti-semitismo. Bom, isso e mais N razões que só uns 3 semestres (ou uma vida inteira) de estudos vai explicar direito.

Você pode começar pelo lado direito

Você pode começar pelo lado direito

Resumindo: Existe uma conexão entre imperativos biológicos e atração estética. Estabelecer os padrões dessa estética, dessa imagem, leva a uma atitude de rotulação, que preenche as lacunas de informação que não conhecemos (que pode levar ao preconceito ou fascínio). Os itens que compõem os uniformes acentuam os aspectos mais rígidos, musculares e simétricos do corpo.

Pois bem…

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Além da aparência, existe um aspecto fundamental que o uniforme confere, com todas as suas características, sem jamais ter que mencionar nada para o público: o uniforme propaga a idéia de exclusividade. Somos extremamente vulneráveis à ideia de elitismo, “self-importance” (o que um psicoterapeuta chamaria de “narcisismo”), de ser um “eleito” e termos tratamentos diferenciados.

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Eis nossa Kryptonita, maior causador do aumento do número de pacientes nos consultórios de psicanalise

A fascinação pelo uniforme é, assim, uma fascinação também pela ideia de distinção, de ser único e notável entre os demais, de excepcionalidade. Ora, a Liga da Justiça, os Vingadores ou a Tropa dos Lanternas Verdes têm critérios muito rígidos para ingressar nas suas fileiras. Nem por isso deixamos de nos extasiar com eles. Aliás, admiramos justamente por serem um grupo tão seleto.

Acima, seletividade

Acima, seletividade

Se por um lado é difícil aferir quanto um leitor de quadrinhos se coloca na posição dos seus heróis ao ler um gibi, de outro é seguro pensar que ele reconhece seus heróis de modo quase automático porque já virou hábito impensado.

Mas sem paranoia! Não quer dizer que você tem que suspeitar dos seus gibis favoritos o tempo todo! Por aqui somos como o House (que esnobava o uniforme de médico): não saber é legal e fascina, como os truques de mágica. Mas saber como o truque funciona é bem mais legal.

Melhor fotos que tínhamos do Hugh Laurie

Melhor foto que tínhamos do Hugh Laurie

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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4 respostas para O poder dos uniformes: estética, biologia e pressões sociais

  1. juliocesarcarneirodeoliveira disse:

    Quando criança e passando para fase de adolescência. Já vi, ouvi e li muitas coisas na vida, inclusive revistas em quadrinhos, os famosos Gibis. Mas não foi o suficiente, apesar de ter lido todos os lançamentos da minha época, penso eu! Sei muito sobre pouca coisa. E estou disposto a mudar de ideia se o argumento for válido. Pois era a minha época de ouro, e tenho muitas saudades dessa época! Atenciosamente: Júlio César Carneiro de Oliveira.

    • Velho Quadrinheiro disse:

      Julio,
      ter pessoas como você como leitores é um privilégio!
      Aqui vamos tomar o maior cuidado para bem tratar as relíquias da sua infância.
      Grande abraço!

  2. Luiz André disse:

    É interessante pensar desta forma: como a mística de se usar um uniforme pode trazer tantos questionamentos a respeito do que determinado personagem tende a passar para seus companheiros e adversários – dentro do universo da HQ – quanto para seu público-alvo – leitores do outro lado das páginas de um quadrinho. Pensar sobre a representatividade do uniforme como um fator que pode distinguir um indivíduo dos demais e, ao mesmo tempo, englobá-los em um produto de massa, tornando sua consciência e emoções ao bel-prazer da coletividade, é um tema caro às ciências humanas por tentar compreender onde reside o papel da construção de uma identidade e de como aspectos genéticos e ambientais caminham juntos nesta criação de uma subjetividade latente e potencial. Falando nisto, um outro ponto que poderia ser debatido no texto acima é sobre esta questão do alter-ego e de como um personagem precisa agir de maneiras diferentes quando usa uma máscara para combater o crime e quando, sem máscara e uniforme, deve-se comportar como os demais, mesmo que possua força para mudar uma situação considerada injusta ou que, se estivesse uniformizado, poderia resolver de uma outra forma. Adoraria que a temática dos uniformes como foi dissertada neste texto retornasse para uma outra rodada de discussões.

    • Velho Quadrinheiro disse:

      Luiz,
      não só interessante, estamos há mais de uma década pensando esses tipos de questões. Nenhuma tem resposta curta.

      Sobre a dupla (ou múltipla) identidade, gosto muito (e prefiro) a interpretação do Dr. Francisco Assumpção Jr., há uma relação entre “máximo” e “mínimo”, forte e fraco, veloz e lento nos heróis de quadrinhos. Agora por que, deixo pra ele explicar no livro. Juro que vale a pena. =D
      http://www.artepaubrasil.com.br/products.php?product=PSICOLOGIA-E-HISTORIAS-EM-QUADRINHOS&utm_source=buscape&utm_medium=buscape&utm_campaign=buscape

      Sobre o alter-ego dos heróis… Eu acho que em se tratando de heróis americanos, a regra é a seguinte: o herói é aquele que está fora da lei mas age em benefício da lei, ou do espírito com que a lei foi escrita. Pra não ser reprimido pelo Estado (ou preso) o herói abre a mão da identidade civil. A referência histórica pra esse “modelo” está no Tea Party de 1773, quando os colonos americanos usaram fantasias de nativos para sabotar as cargas de chá inglês no porto de Boston. Esse episódio foi o estopim para o início do processo revolucionário que levou à independência americana em 1776. Fixou na memória coletiva americana a concepção de que “fazer o necessário” as vezes implica em “vestir uma fantasia” e partir pra ação.

      Claro, isso é um modo “histórico” de explicar. Não é o único.

      (E não esqueça, o espaço dos Red Shirts é aberto ao público! Você mesmo pode escrever sobre o tema e publicamos aqui!)

      Abçs!

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