Você vai morrer! (Mas os quadrinhos podem ajudar)

Você pode fugir, evitar e fingir que não é com você, mas não se engane. Você vai morrer. Mas não entre em pânico! Os quadrinhos podem te ajudar.

Sim, hora ou outra, tudo aquilo que você é, aprendeu, fez, sentiu, conheceu ou influenciou vai simplesmente deixar de ser. É o rumo que a vida de todos segue, é pra onde você está indo. Assim, você tem duas opções: a) negar a ideia até que chegue a hora de “voltar ao pó” (o que talvez provoque medo, surpresa ou um bocado de arrependimento quando acontecer) ou b) aceitar que é inevitável e tudo que você tem é um pouco de tempo – o tempo de uma vida – à disposição.

 

"Your move"

“Your move”

Com dois anos de existência, nós desse lado do balcão notamos que os leitores que aqui visitam não são iniciantes. Cultos, são versados nas velharias publicadas no Brasil e fora. Quase todos conhecem as personificações da morte nos quadrinhos. A amada de Thanos, um dos cavaleiros do Apocalipse (inimigo dos X-Men), a “Equação Anti-Vida” perseguida por Darkseid, Hela, a filha de Loki e a gatíssima irmã de Sandman, Teleute.

No convencional mundo da Marvel e da DC, a morte aparece como algo senão perverso, como referência, instância ou pessoa abominável, a ser evitada, contida ou contra quem se deve proteger. Nas histórias da Liga da Justiça (como em Odisséia Cósmica), ou naquelas dos Vingadores (como em Desafio Infinito ou Guerra Secretas), os heróis não combatem apenas vilões, mas a morte literalmente, como se fosse possível o Batman esmurrar a cara do fim da vida.

É interessante. Nessas histórias, grandes sagas, não se trata apenas de “tirar o passaporte pra outro mundo”. Os heróis lutam para impedir o genocídio, o holocausto de bilhões de vidas que estão sob o perigo de serem ceifadas por algum delírio dos vilões. Acaso?

Como ensinou o Comissário Gordon, não nos damos o luxo de aceitar acasos. A Marvel e a DC, ou melhor, as antigas Timely e National Comics, foram “caixas de ressonância” de um Zeitgeist da geração babyboomer.

Acima, ciência

Acima, ciência

“Hein??”, perguntaria você, pessoa imaginária que tem objeções ao meu texto. Falando de uma forma mais simples: por meio das histórias em quadrinhos da década de 40 a 80, as duas editoras divulgaram valores, concepções e medos de pessoas que nasceram depois da 2ª Guerra Mundial, que cresceram durante a Guerra Fria e que viviam sob pavor constante da aniquilação nuclear.

Bikini

Mas que também popularizou a palavra sagrada “biquini”

Para quem nunca notou, repare na letra de Hammer to Fall, música do Queen (puta banda foda) do álbum The Works, de 1984.

For we who grew up tall and proud
In the shadow of the Mushroom Cloud
Convinced our voices can’t be heard
We just wanna scream it louder and louder

What the hell are we fighting for ?
Just surrender and it won’t hurt at all
You just got time to say your prayers
While you’re waiting for the Hammer to Fall”

Talvez um dos elementos que estamos menos sensíveis hoje em dia, o medo da morte (e do genocídio) era um fator amplamente disseminado nas histórias dos anos 40 a 80. Um medo especialmente acentuado pelas notícias desencontradas sobre os usos e efeitos da radiação. Para quem nunca viu, vale espiar o clássico documentário Atomic Café. Ele é uma coletânea de vídeos produzidos pelo governo americano na década de 1950 mostrando os “procedimentos de segurança” que a população devia seguir em caso de uma guerra nuclear.

O sucesso dos heróis da Marvel, muito além da “humanização dos heróis”, é resultado deste “estigma da morte” que era senso comum na época. O Quarteto Fantástico era pra ter morrido na sua primeira aventura, escaparam de uma dura lição diante de tamanha ousadia científica.

Não importa a fascinação que inspire, o Hulk é fruto de um acidente letal, um câncer monstruoso resultado do uso indiscriminado da radiação.

gamma bomb rests

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Em outras palavras, os quadrinhos trouxeram o estigma da morte (neste caso, da morte associada a energia nuclear) pro cotidiano dos leitores.

E isso é ruim? Bem ao contrário.

prometheaNós, quadrinheiros (bom, eu), achamos que quadrinhos têm uma função emocional muito parecida com os mitos e os contos de fada. Eles são um repertório educativo, uma cartilha de “certos” e “errados”. Explicam e dão sentido àquelas coisas que são misteriosas ou complexas demais para uma mentalidade infantil. Essas histórias, narradas na infância, preparam nosso verde inconsciente para lidar com experiências traumáticas reais que inevitavelmente vão acontecer no futuro quando formos mais maduros, mesmo que não sejam literalmente.

(Na área de História, esses elementos são também chamados de “Imaginário”. Por exemplo, por mais que eu tente, sou incapaz de desvincular a ideia de “ditadura” e “opressão”, que é uma concepção evidente no imaginário brasileiro. Mas estes dois conceitos não eram sinônimos na República Romana [509 a 27 a.C.], cujos cônsules elegiam ditadores de tempos em tempos. Lá, estes ditadores tinham que cumprir algum determinado objetivo num período que não podia passar de seis meses. As vezes isso acarretava opressão, mas nem sempre. Mas pra mim, nascido no meio de uma ditadura, genocídio tem cara de militares abusivos, e não tanto de explosão atômica.)

Se você se perdeu em tudo que foi dito até aqui, um resumo: a Marvel e a DC, de 1940 até fins de 1980, publicaram histórias que rejeitavam, temiam e acima de tudo negavam a morte.

Aí veio Sandman.

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Se você não sabe quem é Sandman, por favor, vá embora. Sério, você não é o tipo de leitor que gostamos por aqui e você é indigno do ar que respira. Devolva na saída.

As histórias criadas por Neil Gaiman, até onde sabemos, são as primeiras a mostrar a Morte como algo muito diferente da terrível ceifadora de vidas (O Sétimo Selo não conta porque é filme). Pelo contrário, em Sandman ela é a gentil companheira de todos os seres vivos da existência. Uma amiga autêntica, “nem abençoada, nem cruel, apenas eu” – ela mesma diria. Conhece-nos quando nascemos e que nos leva para o outro lado quando a vida chega ao fim.

Nos primeiros sete números, Sandman estava claramente habitando o universo dos heróis da DC, com as referências à Liga da Justiça e ao Monstro do Pântano. Eram as aventuras e desafios de Morfeus em sua jornada de volta ao Sonhar depois de 80 anos aprisionado por um mago fajuto. Mas a oitava edição é a primeira que apresenta a irmã do Senhor dos Sonhos em toda sua delicada e gentil forma.

“É hora de partir”, ela diz àqueles que falecem. “Só isso?”, perguntou um bebê. “Sim. Temo que sim.” Para onde vamos depois disso? Isso é com você. Não é trabalho dela. Mas tudo bem.

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Talvez jamais haja religião, pastor, pregador ou palavras mais reconfortantes do que a imagem da Morte criada por Neil Gaiman em Sandman. Há medo no começo, sem dúvida, mas jamais arrependimento, dúvida ou tristeza. Apenas uma aceitação tranquila e solene. A Morte de Neil Gaiman revela uma maturidade de abordagem conceitual que talvez seja exclusiva do autor ou da época em que ele a criou, supera qualquer hábito não considerado dos quadrinhos de 40 anos antes.

Seja como for, a Morte em Sandman está despida de toda carga de pregação ética, religiosa ou moral, que seria o mais convencional ao fazermos referência à morte numa história em quadrinhos, sem heresias, sem insultos.

sandman8 (1)

Se os quadrinhos da Marvel e DC na Guerra Fria nos ensinaram a ter medo quando éramos crianças, os quadrinhos de Sandman nos ensinaram a aceitar a morte quando nos tornamos adultos.

Eu, ao lidar com a perda, certamente fico mais tranquilo com essa referência da Morte do que se não tivesse nenhuma.

Quisera eu que ela fosse suficiente…

PS – Minha homenagem à vovó Didi, que viu o cafezal queimando na guerra, gente morta boiando no rio, bola de fogo caído do céu no marrequeiro, lobo branco que desapareceu no escuro da noite, me agasalhou, ensinou a ir longe e voltar pra casa sozinho. Que as histórias nunca se esqueçam de você. As suas vão ser sempre lembradas.

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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3 respostas para Você vai morrer! (Mas os quadrinhos podem ajudar)

  1. Marwin disse:

    Cara! Fantástico texto (mas incluindo Sandman é de se esperar). A maturidade do quadrinhos sitados era bem diferente da “era Vertigo”, ela mudou nossos conceitos sobre nosso mundo e sobre nós mesmos. A morte vai chegar pra todos(menos personagens Marvel e DC), querendo ou não… Mas seria legal trocar umas palavrinhas com ela.

    • Velho Quadrinheiro disse:

      Uma das coisas que acho mais legais no Sandman é justamente que ele não nasceu no universo Vertigo (bom, que não existia antes dele), mas no mundo convencional dos heróis da DC e “cresceu” para além dele. Além de tudo que é como obra original, Sandman também é uma “ponte” entre dois mundos, dois leitores, duas fases de vida.

      Sem exagero, acho que, em Neil Gaiman, somos contemporâneos de um Fitzgerald, um Byron, um Cervantes. Um artista na acepção plena.

  2. Pingback: Melhores posts até agora – 2 anos de Quadrinheiros | Quadrinheiros

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