Das histórias que não se deve esquecer: “Passos” de Alan Moore

Pra quem gosta de quadrinhos, poucas coisas são tão dolorosas quanto selecionar aqueles que devem sair ou ficar na estante/armário/arquivo. Pra evitar problemas com a vigilância sanitária, a inveja dos arquivos públicos ou da pura e simples hostilidade familiar há uma necessidade periódica, digamos anual, de descarte. Os critérios para tanto variam: das razões passionais, como o entusiasmo que alguma história induziu, às racionais, como o potencial financeiro de alguma edição rara.

Na falta de um critério, aí vai uma sugestão. Tente lembrar: qual quadrinho o fez mudar de opinião sobre alguma coisa? Que história o levou a pensar num tema que você nunca mais conseguiu esquecer? Que histórias definiram como você se relaciona com o mundo?

Cada um podia passar horas e muitas páginas apontando quais e os porquês de cada uma (assim como este post pode gerar continuações). Aqui indico uma:

Passos, de Alan Moore, Jim Aparo (capa) e Joe Orlando (arte) em “Grandes Clássicos da DC  n. 9 – Alan Moore

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Essa história de 1987 é uma narrativa sobre a queda, literal e simbólica de dois personagens. Um deles é um jovem vigilante, membro de um bando de garotos, pretensamente chamados de “Anjos do metrô”, que protegem os usuários do metrô de uma metrópole. O outro personagem é o herói da DC, o soturno Vingador Fantasma.

Etéreo, o Vingador testemunha com curiosidade a trajetória do rapaz: orgulhoso do bem público que promove como parte dos “anjos”, ele é convidado a participar de um outro grupo, nos subterrâneos da cidade, onde vivem dezenas de pessoas “usadas pela vida”, mendigos e viciados em drogas, e que podem se tornar um exército. O autor do convite, mais tarde, é espancado e expulso da gangue dos anjos. Indeciso, o jovem “anjo” não faz nada para impedir.

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Intercalando essa narrativa, descobrimos que o Vingador Fantasma teve uma trajetória semelhante. Ele é, nada menos, que um dos anjos da hoste celestial que servia ao Senhor antes da queda de Lúcifer. Convidado pelos (ainda) anjos Asmodeus e Etrigan (outro célebre personagem da DC) à presença de Satã, o Vingador é chamado a tomar parte na oposição aos planos do Criador de “fazer o barro se erguer e falar”. Para estes dissidentes, o plano de Yahweh é uma tirania. Indeciso, o Vingador testemunha a queda dos rebeldes, expulsos pelo anjo Rafael.sata

EtriganApós a queda, os dois, o Vingador Fantasma e o jovem “anjo” foram violentados pelos caídos, injuriados pela omissão dos companheiros na hora da crise. Mais que rejeitados, os dois são submetidos à brutalidade de seus pares.

Oh, ser um homem no meio. Posicionar-se com a música das harpas nos ouvidos e o sufocante odor de enxofre nas narinas. Oh como me lembro” – pensa o Vingador Fantasma.Phantom_Stranger

Com as “asas” arrancadas (a jaqueta de couro estampada), resta ao jovem apenas a solidão, caído e desfigurado após tantos ataques de seus antigos companheiros. Para a sorte dele, surge o Vingador Fantasma. “Solitários dentro de nossas carcaças separadas, não podemos conhecer a dor dos demais e devemos amargar nossa própria solidão. Da minha parte, eu descobri que caminhar alivia a dor… e que com sorte, às vezes encontramos alguém para caminhar ao nosso lado… ao menos por um breve trecho

Como esta, há algumas histórias que jamais vão sair da minha estante. Há outras que me moldaram de tal forma que a presença física delas não é mais do que um capricho colecionista. Seja como for, cada uma, todas elas, foram tão importantes quanto as experiências que elas induziram ou deram forma. É o ensinamento e a memória dessa história que me ajudam a dar sentido à experiência do que vivo, o que não exige que eu me apegue à materialidade daquele volume. Assim como o abraço de vó, nada mais reconfortante.

PS – antes da chuva de críticas: a história citada é realmente muito boa, por acaso sendo do Alan Moore. Despretensiosa, curta e sem todas aquelas firulas do autor, densidade, detalhismo, complexidade. O tipo de história – até melhores – que talvez ele escrevesse se não tivesse ganhado a visibilidade provocada pelo sucesso avassalador de Watchmen e do próprio nome ter virado uma grife.

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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4 respostas para Das histórias que não se deve esquecer: “Passos” de Alan Moore

  1. Góris disse:

    Demorei um pouco pra me lembrar dessa história, mas quando vc citou a parte final, realmente a lembrança caiu como um tijolo em minha cabeça…

    “Da minha parte, eu descobri que caminhar alivia a dor… e que com sorte, às vezes encontramos alguém para caminhar ao nosso lado… ao menos por um breve trecho””

    Muto legal mesmo!

    • Velho Quadrinheiro disse:

      Se é!
      Como fiz correndo, só dei conta de comentar esta história. Queria incluir também aquela Mistérios Divinos, do Neil Gaiman. Dá um olhar mais humano pra queda do Lúcifer (que não é necessariamente o mesmo do Sandman). A “queda” virou um desapontamento com o pai e não uma conspiração contra o criador, como na história do Alan Moore. Enfim, são duas interpretações de um mesmo evento.

  2. Pingback: Das histórias que não se deve esquecer (2): Épicos Marvel n. 2 – Vingadores versus X-Men | Quadrinheiros

  3. Ramon disse:

    Muito legal. A primeira vez que li a história ela não me impressionou tanto, mas ficou na minha cabeça como algo digno de ser relido. Foi só relendo que eu realmente saquei o quanto a história é bem pensada e construída. E a cena em que o Vingador, ainda anjo, perde as asas, é foda demais. E a qualidade dos diálogos também merece ser lembrada.

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