
Um diálogo entre Edward Said, Roland Barthes e o mais trágico grupo de super-sentai.
Entre os idos de 1987 ou 1988 o Brasil havia conquistado marcas de desenvolvimento que o colocavam em contraste a barafunda econômica das décadas anteriores. Entre 1970 e 1994 foram nada menos que cinco moedas (Cruzeiro, Cruzado, Cruzado Novo, Cruzeiro, Cruzeiro Real) e uma inflação galopante. Ir para outro estado era um custo a ser cortado de qualquer plano. Viajar para outro país, então, era luxo reservado para poucos. E foi nessas franjas de tempo que parece tão distante (não é) quando muita gente ligou a TV e descobriu Changeman. E com Changeman o espectador imaginou um outro lugar.
Transmitido pela extinta TV Manchete a partir de 1988 até 1994, Changeman trazia algumas das histórias mais complexas que um guri esquisito de classe média (eu) poderia conhecer. Era bem diferente de outras animações e séries da época, na maioria americanos, como He-Man e os Mestres do Universo, Transformers ou Thundercats. Mas era singular entre as próprias séries japonesas transmitidas no Brasil, como Ultraman, Spectreman ou até Jaspion, que estreou na mesma época. Característica mais evidente de Changeman era a ambiguidade dos enredos (mas que na cabeça do guri era pura falta de noção mesmo).
O primeiro episódio já dava o tom do que estaria por vir. O sargento Ibuki, comandante das forças de defesa da Terra, voava num helicóptero e mandava bala em cima dos recrutas que, se sobrevivessem, seriam transformados nos Changeman, o grupo de elite com acesso aos mais avançados recursos contra invasores alienígenas.
Já o 9o episódio mostrava que o líder dos Changeman, o Change Dragon, foi um atleta de beisebol na juventude, mas largou o esporte após assassinar um jogador com um arremesso acidental.
Claro, a série era brega, os diálogos eram risíveis, os cenários eram feitos de isopor, geleca e boa vontade. Mas ao largo de tudo que faltava, Changeman caprichava em dois aspectos: a trilha sonora, suítes dos temas principais, que trazia um pop japonês homenageando o mais oitentista sinthmetal (meu letramento musical é zero, mas é fácil reconhecer acordes que parecem tirados do ZZ Top, Saxon, Dio ou Iron Maiden); o enredo, centrado num drama trágico, uma diáspora interplanetária provocada pela expansão do império Gôzma (como avisei, risível).
Um plus à série foi a dublagem brasileira, feita pela Gota Mágica Álamo*, que garantiu uma carinhosa adaptação dos diálogos para o público nacional.
Ao longo dos episódios é revelado que o vilão Giluke, comandante das forças Gôzma, assim como os demais membros da tripulação dele, como Buba, Shima e Gyodai, são expatriados de seus planetas natais. Todos estão ali contra a vontade, forçados a servir o Imperador Bazoo, que mantém os povos dos seus planetas como força de trabalho escrava e fonte de suprimentos para manter a expansão do império. Os Changeman se percebem diante de um dilema: por que eles deveriam lutar contra aqueles que são reféns em uma guerra que nem sequer queriam ter entrado?
Marcante como tantas séries produzidas pela Toei Company (como Sharivan, Sheider, Jiraya, Flashman, Maskman e dezenas de outras), os episódios de Changeman serviam como vitrine de cenários, espaços e paisagens japonesas, que seriam totalmente desconhecidas de outra forma. Mesmo que a maior parte das cenas de batalha ocorressem na mesmíssima pedreira, foi graças a séries como essa que um brasileiro médio pode saber que existe uma torre monumental de TV em Tokyo, que lá existem extensas pontes pênseis e formidáveis diques hexagonais no litoral.

No entanto, a possibilidade de interpretação sobre um outro lugar por meio de Changeman traz um aspecto controverso. Lembrando de Edward Said, respeitando a diferença de contextos e objetos de reflexão, vale lembrar das palavras do autor:
Um campo de estudos como o Orientalismo tem uma identidade cumulativa e corporativa, uma identidade que é particularmente forte dadas as suas associações com a erudição tradicional (os clássicos, a Bíblia, a filologia), as instituições públicas (governos, companhias comerciais, sociedades geográficas, universidades) e os escritos genericamente determinados (livros de viagem, livros de exploração, fantasia, descrição exótica). O resultado para o Orientalismo tem sido uma espécie de consenso: certas coisas, certos tipos de afirmação, certos tipos de obra parecem corretos ao orientalista. Ele constrói a sua obra e pesquisa com base nessas coisas, e elas, por sua vez, exercem forte pressão sobre os novos escritores e eruditos. Assim, o Orientalismo pode ser considerado um modo de escrita, visão e estudo regularizados (ou orientalizados), dominados por imperativos, perspectivas e vieses ideológicos ostensivamente adequados para o oriente. (SAID, Edward. Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente. SP: Companhia de Bolso, 2007, p. 275)
A crítica de Said repousava sobre os esteriótipos construídos sobre o significado do orientalismo (especialmente o arábico) a partir de uma perspectiva ocidental, notadamente a europeia. A ideia de “oriental”, observada Said, congregava uma espécie de mística exótica, um véu de “obscurantismo” cujo esclarecimento exige que as impressões e deduções sobre qualquer aspecto que vem do oriente corresponda a certos paradigmas interpretativos. Arriscando uma simplificação, o orientalismo interpretativo serve para corroborar racismos, imperialismos e preconceitos.
Assim, é preciso se perguntar, Changeman ajudou a constituir um preconceito involuntário sobre o Japão numa classe média brasileira nos anos 80? É possível. Mas isso não faz da obra, seus conteúdos e camadas de estruturação menos relevantes. Muito ao contrário, aquela produção talvez tenha produzido um nexo de sentido bastante distinto daquele concebido pelos autores de Changeman (o roteirista era Hirohisa Soda e o diretor foi Nagafumi Hori). Nas palavras de Roland Barthes,
“Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito. […] o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.” (BARTHES, Roland, A Morte do Autor, 1968).
Em outras palavras, aqui se “matam” os autores de Changeman e ao mesmo tempo aqui se “nascem” novos leitores dessa obra. Mesmo que esta série e tantas outras que vem do Japão possam ter produzido estereótipos ou sedimentado algum tipo de percepção equivocada, ao mesmo tempo ela pode ter provocado efeitos bem diversos. Entre estes efeitos, por exemplo, estão a constituição dos afetos, dos interesses comuns, de agregação de interlocutores que se debruçaram sobre um mesmo produto cultural. O que são os nerds de hoje senão aqueles que se reconhecem como fãs de obras que julgam “sagradas”?
Além de uma identidade de grupo, séries como Changeman, involuntariamente, permitiram a “colonização” de emoções, temas e enredos abordados nos episódios, ajudando a compor uma consciência de época. Já repetido à exaustão por aqui de várias formas, o sucesso (e não menos valioso, a lembrança) dessa série, assim como de gibis, filmes ou tantas obras que acompanharam as infâncias dos sujeitos que hoje são adultos ajudam a compreender nexos de uma visão de mundo de quem tem uma percepção bastante peculiar sobre o significado de “custos”, “luxo” e “viagens”. A quem se sente nostálgico, não se preocupe. Pelo jeito o futuro reserva um cenário bem parecido com aquele passado.
* Devidamente indicado pelo leitor Rodrigo!
Que texto bem escrito hein! Muito bom! Queria ver textos assim no uol, no terra…
Parabéns!!!
Alou, Douglas!
Bom, acho que a pegada ali é pageview. Aqui, às vezes, a gente até consegue agradar. rs
Muito legal o texto!
Sou da mesma geração, e era incrível como algumas tramas, dentro das limitações e decisões estéticas, tinham um certo drama e complexidade que não estávamos acostumados em séries.
Personagens que estão endo obrigados a lutar, séries que o final deixa em aberto se o herói sobreviveu ou não, outras vemos ficando claro seu sacrifício. O próprio caso do Bazzo, no final, ser meramente uma representação visual de um planeta específico vivo, nos ensinando que líderes fascistas criam sua própria imagem, é bem legal.
Achei muito interessante que vi uma informação que no começo do Tokusatsu, foi uma escolha consciente as coisas serem mal feitas, para evitar que crianças acreditassem demais e resolvessem tentar pular de uma casa a outra e coisas do gênero. Foi uma escolha inicial da mesma pessoa que fez os efeitos especiais do primeiro Godzilla e aplicou em Ultraman para evitar esse tipo de situação. Ao mesmo tempo, não ter necessidade de realismo deu umas ideias muito interessantes.
Ao mesmo isso cultivando o nosso imaginário, também de forma preconceituosa, em torno do Japão.
Tudo de bom!
Alou, Tiago!
Bem interessante essa informação sobre a “precariedade” dos Tokasatsu, de ter sido uma decisão deliberada dos produtores.
Com os anos passei a imaginar que diante de todos os desafios de se produzir as séries, os autores optaram por trata-las como algo teatral, onde o improviso é parte da narrativa.
Exatamente o mesmo paradigma que parece ser o centro de Dr. Who desde o 1o episódio. O que é a Tardis, senão um espaço da imaginação dos espectadores?
O faz de conta, esse “pedido” não afirmado do autor para o espectador, ao invés de reduzir a série, permitiu ampliar a potência dela. Me pergunto o quanto um autor sabe dosar esse “pedido”, o quanto é pura sorte.
O texto tá muito bem escrito, e mostra uma criança que viveu isso e sente saudade, assim como eu. Concordo com os preconceitos criados e o estereótipo que se estabeleceu. Parabéns
Changeman não foi dublado pela Gota Mágica. A mesma nem existia na época que foi dublado, entre 1987 e 1988. Ela foi feita pela Alamo, sob direção de Libero Miguel.
Olá, Rodrigo, tudo bem?
Obrigado pela correção! Texto devidamente alterado!
Tive q parar o trabalho pra ler essa matéria, simplesmente perfeito, parabéns aos envolvidos, façam mais, principalmente dos demais programas q passaram no Brasil como Jaspion (primeiro japonês de Black power), Jiraya, flashman e cibercops