O utilitarismo de Jean-Luc Picard

O que o genocida Thanos e o mais formidável oficial da Frota Estelar têm em comum.

Após o hiato de dois anos, a série Star Trek – Picard voltou para a 2ª temporada no último dia 3 de março. Como revelam os trailers, dessa vez as decisões tomadas – ou não tomadas – ao longo da vida do velho almirante são pretexto para o desenrolar da temporada.

Bifurcações no tempo e realidades alteradas em momentos decisivos não são novidade para fãs de Star Trek. Confortável como um chinelo velho, realidades alternativas são um recurso frequente pois inaugura novas formas de explorar a identidade dos personagens ou, mais arriscado, para renovar o elenco.

Neste último episódio é feita a alusão ao poema de Robert Frost, The Road Not Taken, explícita nas palavras de Q, vivido por John De Lancie. Presumindo que você é alguém que encontra prazer na leitura, vez que os versos são guapos demais para omitir, vale reproduzir:

Two roads diverged in a yellow wood,

And sorry I could not travel both

And be one traveler, long I stood

And looked down one as far as I could

To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,

And having perhaps the better claim,

Because it was grassy and wanted wear;

Though as for that the passing there

Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay

In leaves no step had trodden black.

Oh, I kept the first for another day!

Yet knowing how way leads on to way,

I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh

Somewhere ages and ages hence:

Two roads diverged in a wood, and I—

I took the one less traveled by,

And that has made all the difference.*

Uma tradução está disponível em https://www.letras.mus.br/lyriel/the-road-not-taken/traducao.html

A julgar pelo episódio desta nova temporada, a série tem potencial de se comparar com as investidas mais célebres da longeva franquia da ficção científica. No caso de Picard e a atuação muito acima da média de Patrick Stewart (ao menos em comparação com o elenco), exemplos não faltam.

Um caso em especial chama a atenção. No episódio “Elos Perdidos” (“Yesterday’s Enterprise”, Star Trek – TNG, T3/Ep.15, Dir. David Carson, 1990), a Enterprise D se depara com uma fenda temporal, de onde emerge a Enterprise C, predecessora da nave capitaneada por Jean-Luc Picard. Desaparecida a 22 anos, a nave e sua tripulação escaparam por pouco de uma intensa batalha contra os romulanos, em defesa de um posto Klingon. No entanto, a fuga e o aparecimento da Enterprise C no futuro provoca uma imediata alteração da realidade.

Agora, a Federação estava em uma desesperada guerra contra o Império Klingon e às vésperas da derrota. A Enterprise D, invés de uma nave de exploração e diplomacia, é um encouraçado de guerra, tripulada exclusivamente por soldados. A única pessoa a bordo que parece capaz de perceber a mudança é Guinan, a bartender da Enterprise vivida por Whoopi Goldberg.

Alertado por Guinan de que há algo errado na realidade, Picard convoca seus oficiais para deliberar sobre a situação. A hipótese de Picard é de que a batalha da qual a Enterprise C deixou de participar foi determinante para evitar a guerra que eles estavam. O sacrifício daquela tripulação teria sido catalisador para ganhar a simpatia do império Klingon. Sendo assim, o Capitão Picard comunica a decisão para seus oficiais: para evitar a morte de bilhões na guerra contra os Kingons, a Enterprise C e seus os 125 tripulantes devem voltar ao passado – para a morte certa.

O dilema retratado no episódio é outro exemplo da reflexão apresentada por Michael Sandel, sobre o dilema do bondinho. Afinal, para salvar a vida de muitos, é justificável sacrificar a vida de poucos?

O mesmo impasse foi parte do enredo de Vingadores – Guerra Infinita (Dir. Joe e Anthony Russo, 2018). Lembrando, o Capitão América recusa sacrificar a vida do Visão, portador da última Jóia do Infinito, como meio de enfraquecer Thanos. O Capitão América foi enfático: nós não trocamos vidas. A tradução para o português até perde um pouco do sentido original, “we don’t trade lives”, sendo “trade” um verbo usado também para “comerciar”, comprar ou vender.

Vale perguntar: por que os dois capitães pensam de forma tão diferente?

Entre as características mais dominantes, Steve Rogers é o soldado da 2ª Guerra Mundial. Numa perspectiva histórica é plausível considerar que o Capitão América detenha uma moral impregnada de direitos humanos, mesmo que ele ainda não os tivesse chamado dessa forma. A declaração dos Direitos Humanos, assinada pelas nações membros da ONU em 1948, marcaram o apogeu da consciência ética, legal e moral de uma geração. Os direitos de um indivíduo são tão importantes quanto da coletividade, um princípio que em última instância coibiria a possibilidade de novos holocaustos.

Eleonor Roosevelt e a Declaração dos Direitos Humanos, em 1949. Fonte.

Outro aspecto essencial do herói, nas palavras de Mark Waid, o Capitão América é uma manifestação do “sonho” americano. Mesmo que este sonho possa ter interpretações diversas, é seguro considerar que o Capitão América seja defensor de liberdade, igualdade e felicidade. Uma declinação do conceito é: o sonho representa o respeito inviolável do indivíduo e/ou individualismo. A mesma declinação guiou o argumento da defesa do Visão no filme dos Vingadores.

Já o Capitão Jean-Luc Picard, ao menos naquele episódio, traz uma estrutura de valores diferente. Baseado na confiança que tem em Guinan, personagem quase imortal e que serve como uma projeção da consciência de Picard, ele se baseia no princípio da maximização dos resultados hígidos em detrimento dos nocivos. Como delegado de uma coletividade de planetas com características e individualidades tão diversas, cabe a ele tomar uma decisão que beneficie o maior número de pessoas possível.

Nada de revolucionário, a ideia é um dos pressupostos do pensamento liberal de John Stuart Mill, e que ficou conhecida como “utilitarismo”. Nas palavras de Mill:

Segundo o Princípio da Maior Felicidade […] o fim último, em relação ao qual e em função do qual todas as outras coisas são desejáveis (independentemente de estarmos a considerar o nosso próprio bem ou o bem das outras pessoas), é uma existência tanto quanto possível livre de dor e, também na medida do possível, rica em deleites no que respeita à quantidade e à qualidade – e o teste da qualidade, bem como a regra para a confrontar com a quantidade, é a preferência sentida por aqueles que, em virtude das suas oportunidades de experiência, às quais têm de se acrescentar os seus hábitos de consciência e observação de si próprios, dispõem dos melhores meios de comparação. Sendo isto o fim da ação humana, é necessariamente, segundo a opinião utilitarista, também o padrão da moralidade. Este padrão define as regras e os preceitos da conduta humana. cuja observância pode assegurar aos seres humanos, no maior grau possível, uma existência como a que descrevemos – e não só a eles, mas, na medida em que a natureza das coisas o permite, a todas as criaturas sencientes. (Grifos nossos. Apud MILL, John Stuart. Utilitarismo – Introdução, Tradução e Notas de Pedro Galvão. Porto: Porto Editora, 2005, P. 53.)

Uai! Mas esse é o mesmo raciocínio do Thanos!”, diria esse mineiro que te habita.  Afinal, Picard e Thanos querem salvar pessoas mesmo com o sacrifício de outras. Picard e Thanos compartilhariam os mesmos princípios? Seriam farinha do mesmo saco filosófico?

É tentador dizer que sim, mas o capeta está nos detalhes.

Lembrando, a razão de Thanos para buscar as Jóias do Infinito era apagar da existência metade dos indivíduos de todo o universo, uma forma de garantir recursos limitados, como terras e alimentação, para todos os sobreviventes. Não se diz como, Thanos concluiu que a medida adequada para o dilema da existência era o sacrifício de nada menos que a metade de todos os seres vivos.

Já Picard escolhe o sacrifício de 125 em troca de 4 bilhões. Vale dizer, não são quaisquer 125 pessoas, mas oficiais da Frota Estelar, que queriam voltar para aquela batalha. Ademais, o benefício potencial era fortalecido pela fé quase esotérica de que esse é o curso normal dos acontecimentos. Graças à atuação de Stewart, porém, fica claro que Picard se revela relutante com esta decisão, enfurecido com a falta de provas oferecidas por Guinan.

É interessante lembrar que Thanos também sofreu graves crises de consciência. “As decisões mais difíceis exigem a mais forte determinação”, disse ele antes de lançar a própria filha para morte em troca da Jóia da Alma.

Como tipo ideal de um tempo, Jean-Luc Picard representa a moral de uma consciência multicultural, pan-universal, e não se pode esquecer, manifestada nos últimos meses da Guerra Fria. Em 1990, poderia-se pensar, o respeito ao indivíduo se confundia com a defesa da diversidade nacional, em especial daquelas nações que deixavam de ser guiadas pelas diretrizes do mundo bipolar.

Ao fim do dia, o indivíduo tem menos valor que o benefício a proporcionado para a coletividade. Ou, nas palavras imortais de Spock, “A lógica claramente determina que as necessidades de muitos superam as necessidades de poucos. Ou de um só.”

*Apud https://www.poetryfoundation.org/poems/44272/the-road-not-taken

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
Esse post foi publicado em Velho Quadrinheiro e marcado , , , , , , , , , , , , , , . Guardar link permanente.

Comente!

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s