Isso não é uma resenha.
A pandemia ficou no passado? Pois esta é a ilusão que se pode ter ao assistir Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (dir. Jon Watts, 2021). Ao lado de marcos históricos imponderáveis, como a queda do Muro de Berlim, a Constituição de 1988, o lançamento do Plano Real, os ataques de 11 de setembro de 2001, as “jornadas de 2013”, o impeachment de Dilma ou eleições, o cinema, mais que a política, a História ou os quadrinhos, fixa datas e etapas num imaginário compartilhado por milhares de fãs. E o que isso revela sobre nós como público?
Esta foi uma alfinetada feita pelo diretor Woody Allen. No último domingo, em breve entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ele foi questionado sobre a presença massiva do público no lançamento do último episódio do herói azarado. Sobre o sucesso do Homem-Aranha, afirmou Allen:
Acho que diz muito sobre o público que está indo ao cinema. As pessoas querem ver isso, estão dispostas a, no meio de uma pandemia, ir à sala de cinema para ver Homem-Aranha, com todos os seus efeitos. Para mim, é uma indústria separada. Existe o cinema como negócio e o cinema como arte. Quando artistas como Luis Buñuel ou Ingmar Bergman faziam um filme, eles esperavam um público pequeno de pessoas perspicazes, educadas e interessadas em obras de arte sérias. E há toda uma indústria interessada na bilheteria. Se você está nesse ramo, é maravilhoso, eles fazem centenas de milhões de dólares. Eu estou interessado em filmes mais artísticos, com público menor. Meu desejo ao fazer um filme não é financeiro, mas, sim, de fazer um bom filme. Então, mesmo que a audiência seja pequena, tudo bem.
Por partes.
Sem surpresa, era inevitável redundar na velha questão da arte X consumo. Num cálculo modesto, considerando o valor médio da meia-entrada em torno dos R$30, uma sala com 130 lugares ocupados e com 3 sessões diárias (R$11.700/dia), será gerada uma receita de cerca R$35.100 só no último fim de semana. Somadas as receitas das demais salas, e sem contar a venda de pipocas e doces ou as despesas das redes de cinema, é mais que razoável pensar que graças aos filmes da Marvel e DC ainda exista espaço para outros filmes. Até mesmo para herdeiros do calibre (?) de Buñuel e Bergman. E isso o próprio Allen admite. Outra questão é a avaliação que ele faz do público que assiste cada tipo de filme.
É plausível pensar que a maioria dos fãs dos filmes do MCU com menos de 40 anos não tenham grandes lembranças do Sétimo Selo (Bergman, 1957) ou O Anjo Exterminador (Buñuel, 1966). Apesar de portarem títulos mais maneiros do que “Dr. Estranho no Multiverso da Loucura”, são obras que exigem considerável repertório. São obras polissêmicas, que exigem alguma maturidade para serem apreciados. Contudo é mais que certo que cada especialista, Nobel, desembargador, tribuno, livre-docente ou qualquer graúdo tenha buscado no Zorro, no Batman, no Flash, no Wolverine ou até no Homem-Aranha alguma inspiração inicial para aquela profissão que escolheram como carreira. Jogar no lixo toda produção voltada para a indústria de entretenimento apenas porque é menos densa não é apenas despeito. É rejeitar um aspecto essencial da nossa infância.
Qual seja o juízo que se faça sobre Allen e a biografia dele, o fato é que enquanto este texto é escrito, restam pouco mais de 10 assentos livres em uma sala de cinema com o filme do Aranha. Outras duas salas no mesmo shopping e quase no mesmo horário já estão esgotadas.

Em que pesem as restrições, cautelas e rituais sanitários que hoje adotamos como rotina, vale pensar que nem todos ali são adeptos do bem coletivo. Ingenuidade pensar que cada fã da Marvel – assim como eu e você – ansioso para assistir o novo capítulo da “Fase 4” do MCU – como eu e você – tenham entendido ir ao cinema como um risco.
Para uns, ir ao cinema é algo como pegar estrada cheia numa madrugada com tempestade e neblina. Pode ser fatal. Para outros é bem ao contrário e quem está em risco são os outros. Para estes, deixar de ir ao cinema seria uma privação da liberdade individual, uma deformação do direito de ir e vir. Ofensivo até, uma vez que se está pagando para exercer esse direito. Há quem veja o vínculo entre escolha pessoal e bem público como mera fantasia. E é bom que se diga, não é. Cada decisão impacta na vida alheia, especialmente naquela mais carente de recursos materiais e financeiros.
Ao lado do ressurgimento de Batman, do que levou à Guerra Civil ou da vitória dos Vingadores sobre Thanos, reconhecemos outras “fases” e “eras” da ficção com tanta exatidão quanto fatos históricos importantes. Mas ao contrário do que possa sugerir as lotadas sessões de Homem-Aranha: Sem volta para Casa, a pandemia ainda não acabou.