
Nessa altura, criar vilões devia ser como andar de bicicleta.
Após quase dois anos de pandemia, boa parte da torcida brasileira já se encontra devidamente vacinada, portando elegantes rabos de jacaré. Com eles vem o ímpeto de retomar velhos hábitos, aquela invasão do espírito, vontade que abre a geladeira da curiosidade e se alivia na porta aberta do entretenimento. Tão mortal como saltar de paraquedas, arriscando a segurança de si e da própria família, surge o ímpeto bravio de ir ao cinema.
Ok. Chega de firula.
Quem se arriscou, pôde assistir no cinema Shang -Chi e Eternos, os dois lançamentos mais recentes do Marvel Cinematic Universe (MCU). Além deles, outros três títulos live-action foram diretamente para o streaming, Wandavision, The Falcon and the Winter Soldier, Loki, sem contar a animação What if… . Completando a retomada de lançamentos após a “Saga do Infinito”, este ano ainda chegam a série Hawkeye (24 de novembro) e Spider-Man: No way home (dezembro).
Se você parar para observar, 2021 teve mais lançamentos do MCU que qualquer ano anterior (conforme pode ser observado no print dessa tabela super profissional que eu fiz):
Ou seja, já foram seis títulos live-action lançados e mais dois até dezembro. Destes, três ficaram cerca de dois meses no cinema antes de passarem ao streaming. De um lado, isso se explica pela retenção de lançamentos em 2020 por conta da pandemia. De outro, evidencia a expansão das produções da Marvel na direção das plataformas online, novo e incontestável indicador de acessibilidade e inclusão social.
Uma vez que é domingo a tarde, tem ENEM, prova pra corrigir e o texto sobre o Carl Schmitt e Oswald Spengler ia dar muito trabalho pra sair, o jeito foi analisar os vilões dos filmes da Marvel ao longo desses 13 anos. A intenção era mostrar que a Marvel tem problemas em apresentar “bons” vilões.
À guisa de taxionomia e método foram estabelecidos alguns critérios para agrupar os vilões dos 29 títulos lançados até o momento. Destes destacam-se:
I – A relação do vilão com o(s) herói(s)
Sem relação pessoal com o herói – 5 casos
Concorrente profissional/antagonista impessoal -10 casos
Melhor amigo/parente/amante/mentor – 14 casos

Considerações possíveis: Raras vezes os heróis da Marvel entraram em choque exclusivamente por princípios ou critérios técnicos. A maior parte das disputas tinham fundo pessoal ou familiar. O que seria do MCU se os heróis fizessem terapia?
II – Motivação declarada dos vilões
Exterminar/purgar/genocida – 5 casos
Desarranjar/desfazer a situação vigente – 6 casos
Governar de forma absoluta/autoritário – 8 casos

Conservar/dominar a situação vigente – 10 casos

Considerações possíveis: São poucos os vilões genocidas e raras as vezes em que eles aparecem nas histórias (Thanos é vilão de dois filmes e mote de toda saga do infinito). Na maior parte dos filmes, os vilões têm pretensões, digamos, modestas. Dominar o mercado da própria área de atuação, derrubar concorrentes, assumir hegemonia, mas não o controle de governos ou estados. Os vilões autoritários pendem para modelos absolutistas, exigindo subserviência e lealdade num sentido quase medieval. Os mais interessantes parecem ser os que buscam “desarranjar” a sociedade, vilões que buscam inverter as relações de poder e sociedade. Uma minoria acima apenas dos genocidas são os radicais do submundo em busca de justiça que lhes foi negada.
Se isso fosse um texto sério, a hipótese aqui seria que a Marvel falha em estabelecer vilões memoráveis quando não os associa a um arquétipo autoritário claro. Ou então quando deixa de fornecer razoabilidade para os atos que eles cometem. Killmonger é memorável porque requer reparação na medida de Talião. Thanos é memorável porque deu substância a um utilitarismo extremo. Qualquer nuance que escape destes quadrantes (empatia/alusão arquetípica/alegoria filosófica) fazem dos filmes da Marvel uma simples vitrine de efeitos especiais. Ou então porque nenhum vilão da Marvel tinha um fundo musical como o do Darth Vader, o que deixa a gente meio confuso na hora de torcer pra alguém se dar mal. Mas isso não é um texto sério, não é?