É difícil afirmar se X-Men- Mutant Genesis n.1 atendeu à expectativa de um público ou se borrou de vez os limites entre gêneros.
Ao lado de marcos históricos importantes como o Monumento de Washington, o obelisco da Place de La Concorde, o orelhão de Itu, a Torre Eiffel e o Borba Gato, X-Men – Mutant Genesis n.1 é um monumento a ser visitado. Lançada nos Estados Unidos em outubro de 1991, com suas 4 capas variantes, foram 8 milhões de cópias vendidas nos Estados Unidos, um recorde isolado até os dias de hoje.
Para quem não lembra vale rever as capas:
Não só por conta da estatura das vendas, a obra mais célebre da parceria entre Jim Lee e Chris Claremont é indispensável porque o cenário em que apareceu era bem diferente antes da revista surgir.
Ao longo da década de 1980, os X-Men se transformaram no carro-chefe de vendas da Marvel e tornaram Wolverine um ícone inconfundível. O sucesso se deve em grande medida a desenhistas como John Byrne, Paul Smith, Arthur Adams, Marc Silvestri, além autores como Walt e Louise Simonson.
Embora o roteirista Chris Claremont tenha sido o maior arquiteto das histórias mais célebres dos mutantes, como A Saga Fênix Negra e Dias de um Futuro Passado, o desenhista Jim Lee pouco a pouco ganhava destaque ao assumir os espaços deixados por Marc Silvestri na revista mensal Uncanny X-Men.
Nessa transição ficou claro, cada vez mais o apelo dos heróis mutantes estava ligado ao estilo visual. Depois da publicação de revistas como Uncanny X-Men n. 274 em março de 1991, outros lançamentos da Marvel tentavam reproduzir a fórmula. É o que deu origem ao infame uniforme da Mulher-Invisível em Fantastic Four n.371, em dezembro de 1992.
Algo menos evidente nos colossos de pedra, madeira e metal espalhados pela cidade (pensando bem, são colunas ou figuras masculinas em ângulo reto apontando para o céu…), X-Men – Mutant Genesis privilegia um determinado tipo de olhar.
Notou um padrão? Não? Para ajudar, eis algumas capas da revista Playboy americana de 1990/1991:
Vale lembrar, uma das características mais marcantes da icônica revista erótica eram os pôsteres dobráveis com a garota da capa (o “centerfold”). Exatamente o mesmo formato estava presente em X-Men – Mutant Genesis, outro fator para o sucesso de vendas.
É difícil encontrar alguma declaração dos autores da Marvel no começo dos anos 90 que confirmem a inspiração nas modelos da Playboy. Tanto mais difícil afirmar se o sucesso de X-Men – Mutant Genesis se deu porque atendeu a expectativa de público ou se foi resultado da confusão intencional do que separava quadrinhos e as revistas eróticas masculinas. Em teoria, estas eram objeto de desejo oficialmente fora do alcance do leitor prestes a entrar na adolescência.
Sem perder tempo para o inócuo juízo moral sobre pornografia, vale lembrar que, do ponto de vista da psicologia do desenvolvimento, a adolescência terá como característica a trajetória de oscilação entre controle e excitação das capacidades do sujeito. E o campo laboratorial destes extremos se dá justamente nos comportamentos “delinquentes”, como o contato com as obras “transgressoras”, como o erotismo e a pornografia voltada “para adultos”. Conforme indicam Miguel Oliveira e Lúcia G. Pais:
Em poucas palavras, tudo aponta para que o período de desenvolvimento rotulado de adolescência não constitua mera aquisição e activação de estratégias cognitivas mas, também, senão mesmo especialmente, a sofisticação progressiva do seu controlo e inibição […]. Estes mecanismos fundamentais de controlo e inibição aparentam ter o seu esteio num modo de funcionamento ou de processamento dual da informação […]. Tal processamento dual resulta num complexo funcional que se manifesta em determinadas etapas na primazia de certos processos de controlo sobre outros de activação (arousal), noutras no seu contrário, noutras ainda numa sua coordenação. (OLIVEIRA, Miguel & PAIS, Lúcia G.. Tomada de decisão na adolescência: do conflito à prudência. Disponível em https://www.researchgate.net/profile/Jose-Miguel-Oliveira/publication/307937551_Tomada_de_decisao_na_adolescencia_do_conflito_a_prudencia/links/57d2b6e508ae6399a38d935e/Tomada-de-decisao-na-adolescencia-do-conflito-a-prudencia.pdf Acesso em 17/09/2021.
Dito de outra forma, o desenvolvimento do adolescente dá espaço para a edificação de um repertório de faculdades operacionais, que a cada nova situação, cada nova experiência, subsidiam a capacidade de tomar decisões ao longo da vida. Assim como a influência de diferentes fatores, como a aprendizagem escolar, as mudanças físico-anatômicas e a pressão de grupo nos meios sociais, o contato com diferentes obras artísticas – como os quadrinhos – tem o potencial de influenciar uma visão de mundo e juízo sobre a realidade.
Antes que você chegue à conclusão de que os quadrinhos induzem adolescentes à pornografia ou que, tanto pior, as revistas dos anos 80/90 promoveram uma objetificação feminina degradante, voltemos ao início: tal como outros marcos históricos, certos quadrinhos devem ser revisitados. O contexto e o sentido de onde eles foram erguidos possui uma temporalidade singular. Isso não impede a atribuição de novos significados ao seu redor ou impede novos aprendizados a partir deles. Tal como as memórias, bobagem dizer que estes marcos são bons ou ruins.
Mais valioso é reconhecer em marcos históricos, seja a obra de Jim Lee, as revistas eróticas do passado e os obeliscos das cidades, partículas para a compreensão do presente. O desafio é enxergar nestes monolitos mais do que apenas a sua superficialidade, seu lado mais evidente. O desafio é deixar para trás a condição de mero turista de nossa própria paisagem cultural.
Não fazia nenhum sentido… mas era show de bola! Kkkkk