Um debate sobre história, epistemologia e cultura popular.
Passados quase 13 anos do lançamento, o filme Batman: O Cavaleiro das Trevas ainda leva a reflexões. Bola da vez, lembramos a famosa afirmação de Harvey Dent no jantar com Bruce Wayne e Rachel Dawes:
Claro, havia uma intenção metalinguística ali. Dent era um modelo de sujeito público, o símbolo da legalidade e do estado democrático de direito. De um lado o aforismo dito por ele anunciava a trajetória do próprio Harvey Dent, que se tornou o vilão homicida Duas Caras. De outro descreve o estorvo de Batman, que assume a culpa pelos crimes de Duas Caras, uma forma de preservar a memória de Dent antes de sucumbir.
Mas a real mensagem narrativa é: Dent estava errado, uma vez herói, sempre herói. Na perspectiva do narrador oferecida ao público, a qualidade heróica de Batman ficou codificada pelo sacrifício voluntário e essa qualidade seria atemporal.
Essa percepção leva à questão central deste texto: existe heroísmo atemporal?
Vamos ver.
Antes de continuar, para você, vivente de 2021, que sentimentos são provocados ao pensar no termo “invasor”? Que sinônimos você usaria para o termo?
Posso estar errado, mas é provável que tenha sido levado a uma associação negativa da palavra. Pode ter pensado em pestes, cupins, baratas, ratos, ou sujeitos transgressores, ladrões e hackers, ou até doenças, como a Covid-19.
Mas o que poderia pensar um sujeito de 1975? Ele pensaria a mesma coisa que nós?
É possível. Mas a ele seria mais difícil associar “invasor” apenas a qualidades negativas. Um exemplo é o grupo “Invasores”, da Marvel.

Desde o fim da 2ª Guerra Mundial, a investida das nações aliadas contra a Alemanha nazista ganhou ares de narrativa mitológica, com heróis idealizados e vilões implacáveis. A “Grande Guerra” se tornou o ponto de consenso universal, uma irrefutável noção de que é certo ou errado, base para uma consciência histórica e social entre todas as nações (tsc tsc, até Hannah Arendt botar o dedo na ferida em Eichmann em Jerusalém).
Nada mais natural que, quando a revista foi lançada, o público enxergasse nos heróis da Marvel os sentimentos – e palavras – que naquelas circunstâncias julgavam legítimos e necessários. A memória dos anos 1970 ditava que ser um herói na 2ª Guerra era ser um invasor. A historicidade das circunstâncias conferia sentido ao termo.
Da mesma forma, valores e atitudes que hoje entendemos ser condenáveis, em especial aqueles que habitam o foro privado, não são mais tolerados. Como, por exemplo, o tabagismo ou o consumo de bebidas alcóolicas.
Tabagismo é um hábito associado aos antagonistas das histórias, coisa de vilão ou vítimas, se é que a prática de fumar aparece. A exceção é quando fumar um charuto ou cigarro aparece para caracterizar um traço rebelde dos heróis, como é o caso de Wolverine e John Constantine.

No caso de consumo de bebidas alcoólicas, a prática pode ser até retratada, mas pouco evidenciada, exceto quando se torna mote de uma história. Exemplo clássico é o arco “Demon in a Bottle”, em que Tony Stark reluta em se admitir alcoólatra e provoca vários desastres antes de se redimir.
As vezes em que os quadrinhos serviram como canal de posicionamento sobre algum tema polêmico ou sensível, conforme apontamos aqui, costuma ser tangente aos enredos principais. Já o paradoxo do anacronismo dos heróis foi pontualmente observado em Os Supremos, de Mark Millar (2005-2008).
Ali, o Capitão América, um sujeito com a moral de um homem branco americano dos anos 1940, entra em constante choque com a moral dos heróis de 2005 (que já está ultrapassado para algumas pessoas…), ano em que foi publicada a história.

Após dar uma surra em Hank Pym, marido violento e abusivo de Janet Van Dyne, Steve Rogers começa um relacionamento com a Vespa. Passado o efeito cômico da situação, sem dar spoilers, não demora para as tensões entre os dois personagens, com visões de mundo completamente distintas, emergirem.
Uma fonte não pode nos dizer nada daquilo que cabe a nós dizer. No entanto, ela nos impede de fazer afirmações que não poderíamos fazer. As fontes têm poder de veto. Elas nos proíbem de arriscar ou admitir interpretações as quais, sob a perspectiva da investigação de fontes, podem ser consideradas simplesmente falsas ou inadmissíveis. […] As fontes nos impedem de cometer erros, mas não nos revelam o que devemos dizer. (KOSELLECK, R. Futuro Passado. RJ: Contraponto, 2006. p. 188)
Invés de se abster, de forma metódica, como um pesquisador faria ao se defrontar com uma fonte ou sujeito do passado, Millar faz um exercício que é dispendioso para o historiador, o julgamento do passado a partir da perspectiva do presente. Indo além de qualquer insinuação, a mensagem de Millar é enfática: cada herói possui uma temporalidade intrínseca. Se Harvey Dent estava incorreto e os heróis são heróis em qualquer tempo, para Millar, não há correção de valores que resista à passagem do tempo.
E quem tem razão?