Super-heróis, Estado e opinião pública

Novos Titãs drogasAchou que não ia ter histórias de super-heróis contratadas pelo governo pra influenciar a opinião pública? Achou errado!

Edições encomendadas para abordar temas de interesse público (PSA – Public Service Announcement, no original), são um tipo de publicação bastante comum nos Estados Unidos, mas que nunca chegam por aqui. Funciona assim: uma agência governamental ou uma organização social encomenda uma história (em geral uma edição única), na qual um personagem famoso fala sobre a importância de algum assunto que tenha impacto na sociedade como uso de drogas, abuso sexual, gravidez na adolescência, uso do cinto de segurança, analfabetismo, minas terrestres, entre outros. Serve como parte de uma campanha para educar a opinião pública sobre aquele tema.

Como são histórias que não fazem parte da cronologia dos personagens e que, muita vezes, são feitas para serem distribuídas gratuitamente nas escolas, as editoras não se empenham muito em produzir um material de qualidade. Algumas das histórias tem tantos furos de roteiro que chegam inclusive a ter o efeito contrário ao pretendido – o assunto de interesse público acaba ridicularizado.

Seguem alguns exemplos dessas histórias, que, mais do que uma curiosidade, são documentos que revelam os contextos social, econômico e político do momento em que foram produzidas:

Os Novos Titãs dizem não às drogas (1983)

Nos anos 1980 a primeira dama dos Estados Unidos – Nancy Reagan – liderou uma cruzada contra as drogas com a campanha “Diga não às drogas!”. Várias mudanças na legislação endureceram as penas para usuários e pequenos traficantes, levando ao enarceramento em massa e a criminalização de áreas de baixa renda e de suas populações (assistam o documentário 13ª Emenda para saber mais sobre isso).

Nesse contexto, uma empresa de produtos alimentícios (Keebler) solicitou para a DC comics uma história com um dos grandes (Batman / Mulher Maravilha / Superman). A editora ofereceu os Novos Titãs, o título que mais vendia na época, de olho nos novos leitores que poderia ganhar com essa distribuição nas escolas. O time de criadores da série regular dos Titãs (Marv Wolfman / George Perez / Dick Giordano), assumiu a produção. Por causa da qualidade dos criadores a primeira edição desse PSA foi reimpressa e sua distribuição ampliada. Mais duas edições foram encomendadas, uma pela Associação de Produtores de Bebidas Não Alcoólicas, e a outra pela IBM.

Na primeira edição os Novos Titãs ajudam um grupo de jovens a superar seu vício e para isso Ricardito (Speedy) conta a sua história pessoal de uso de drogas ilícitas (entre outros depoimentos). A segunda edição mostra o grupo de heróis fazendo uma palestra sobre os perigos da drogas para pais e alunos numa escola primária. Na terceira, um parente do Protetor tem uma recaída e os heróis o ajudam.

Ainda que a maior parte das três narrativas sejam clichês, Marv Wolfman inclui os aspectos psicológicos e emocionais dos usuários como parte fundamental da adicção, e a necessidade de um grupo de suporte para ajudá-los a superar o vício. Embora as duas primeiras edições sejam direcionadas para o Ensino Fundamental e a terceira para o Médio, algumas cenas são bem fortes (como a que mostra dois jovens aspirando o pó que caiu no chão de um banheiro público), e são mencionadas a maconha e o pó de anjo (PCP), cujo consumo recreacional crescera muito entre os jovens de classe média no final da década de 1970.

Supergirl tenta te convencer a usar o cinto de segurança (1984)

Imagine um tempo em que a população dos Estados Unidos estivesse resistente a uma coisa simples que poderia salvar vidas? Mesmo com todas as estatísticas mostrando a efetividade, o principal argumento contrário era a liberdade individual, a resistência a aceitar uma ordem do Estado impondo a obrigatoriedade de algo sobre a vida dos seus cidadãos. No início da década de 1980 essa era a reação das pessoas diante do uso compulsório do cinto de segurança para todos os condutores e passageiros de automóveis (nehuma relação com os dias de hoje, graças à nossa crescente maturidade sobre a preservação da vida humana como um valor primordial).

A montadora Honda (American Honda) em parceria com o Departamento de Transportes do governo dos EUA encomendaram pra DC uma história da Supergirl que abordasse os perigos dos acidentes de carro e como o cinto de segurança podia salvar vidas. Tanto a empresa quanto o governo americano enviaram consultores para colaborar com o desenvolvimento do roteiro, por isso nos créditos a história cita 9 pessoas como responsáveis pela história. Talvez por isso mesmo seja tão ruim.

A história tem muitos furos de roteiro, como na cena em que a super-heroína usa o telefone de um carro de polícia para falar com seu namorado, e, mesmo estando ao lado de policiais, usa o seu nome civil, revelando assim sua identidade secreta, sem que isso tenha maiores consequências para narrativa. A ação principal acontece com o namorado, que se envolve em um acidente de carro e entra em coma (ele obviamente não estava usando o cinto). Durante sua hospitalização ele tem sonhos recorrentes sobre acidentes de carro, sempre sem o cinto, até que no último sonho ele resolve usar, sobrevivendo assim ao acidente e voltando do coma.

Apesar da história fraca e dos furos na narrativa, é interessante como registro dos principais argumentos que as pessoas usavam na época para defender a liberdade de escolha em relação ao uso do cinto. As pessoas diziam que não estavam guiando rápido o suficiente pra justificar o uso do cinto, ou ainda que o cinto afivelado atrapalhava a condução do veículo, e que portanto era mais seguro conduzir o carro sem o cinto. E o mais recorrente – que pessoas que “sabem dirigir bem” não precisavam de cinto (o clássico “eu não sou motorista, sou piloto!”). Qualquer semelhança com qualquer lógica argumentativa em qualquer momento da história humana não é mera coincidência…

Dois anos depois uma segunda história da Supergirl foi novamente encomendada como parte da longa campanha de concientização sobre o tema. Aparentemente não é fácil convencer as pessoas a não colocarem a si mesmas e aos outros em risco de morte.

Homem-Aranha luta contra a gravidez na adolescência (1976)

Uma parceria entre a Marvel e o Departamento de Planejamento Familiar nos trouxe uma história sobre educação sexual difícil de compreender! A roteirista responsável – Ann Robinson – era uma das funcionárias da editora que trabalhava no departamento de vendas. A suposição é que ela atendeu o pedido do governo e acabou ficando também com a tarefa de escrever a história.

Na narrativa, o Homem-Aranha segue, no meio da noite, um helicóptero cheio de adolescentes, até uma mansão cheia de seguranças, onde um alienígena disfarçado de humano dá uma palestra sobre como a juventude é a idade ideal para ter filhos, sobre como é mentirosa a ideia de que filhos trazem muita responsabilidade, além de assegurar que não é tão fácil assim engravidar.

Ainda que a história deixe claro que o tal alienigena tem poderes hipnóticos que são capazes de fazer uma lavagem cerebral instantânea na sua plateia (e ele está se preparando para falar em cadeia nacional de TV), os jovens presentes não se convencem facilmente. Alguns deles questionam os argumentos do Prodigy (esse é o nome do vilão), e ele sofre pra construir uma argumentação minimamente coesa. O foco do roteiro é a gravidez na adolescência, e talvez por isso não existe um incentivo ao sexo propriamente dito na fala do alienígena, apenas uma minimização das consequências do sexo. Por fim o Cabeça de Teia desmascara o vilão e o impede de falar. Ponto final. Pode-se dizer que o objetivo não foi atendido exatamente.

Uma curiosidade engraçada – no meio da história o Aranha se pergunta o que aqueles jovens estariam fazendo numa hora daquelas, embarcando em um helicóptero, ao invés de estarem em casa ouvindo o novo disco do Henry Gross. Acontece que esse cantor de um único sucesso tinha como produtor de seus disco o marido de Ann Robinson. Nada como usar o dinheiro do governo para impulsionar a carreira de um parente, afinal o pecado também está no dedo de quem acusa!

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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8 respostas para Super-heróis, Estado e opinião pública

  1. Gazy Andraus disse:

    Boa abordagem temática. Lembrandio de quando as HQs de Lanterna e Arqueiro Verde (desenhadas por Neal Adams) tb abordaram as drogas e tremas sociais. Mas entendo que seu texto vai pelo caminho das HQs “encomendadas”, o que também é válido e com certo ineditismo no Brasil, já que pouca se escreveu sobre essas HQs que vc aqui menciona. Eu mesmo não conhecia estas aqui abordadas: nem as da Turma Titã, e nem as da Supergirl. Parabéns pelo artigo.

  2. Santuário HQ disse:

    Ótimo artigo… Interessante ver que o Robin não apareceu nessas histórias dos Titãs (por alguma razão bizarra envolvendo direitos autorais) e por isso foi o criado o personagem “Protetor” para substituí-lo.

    • Exato! Outra coisa que é interessante é que nessa primeira edição dos Novos Titãs contra as drogas tem umas páginas de “depoimento” dos personagens, muito parecido com o que o Tom King fez no Heróis em Crise. Um dos depoimentos da série do Tom King é do Protetor, o que leva a especulação de que ele se inspirou nesse quadrinho encomendado pela Keebler de alguma forma.

  3. Um belo texto. Não sabia dessas edições encomendadas pelo governo. A pergunta é: será que surtiram efeito mesmo?

    • Valeu! No caso do cinto de segurança sim. Não que o efeito seja resultado do quadrinho, mas de alguma forma foi uma contribuição dentro de um conjunto de ações de conscientização. Os outros dois casos são mais complexos, tem muitas causas distintas que se somam, e o foco dos quadrinhos estava enviesado por desconsiderar a maior parte das causas (ainda que no caso das drogas a abordagem do Marv Wolfman foi mais fundo). E tem um monte de outras edições encomendadas como essas. Acho que vou fazer um “parte 2” desse texto pra continuar essa conversa. Abs!

  4. Pingback: A que tempo pertencem os heróis? | Quadrinheiros

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