A atualidade de Orwell pelas mãos de Fido Nesti.
Publicada pela primeira vez em 1949, 1984 conta a história de Winston Smith, refém de um mundo feito de opressão absoluta. Em Oceânia ter uma mente livre é considerado crime gravíssimo. Numa sociedade em que a mentira foi institucionalizada, Winston se rebela e, em seu anseio por verdade e liberdade, arrisca a vida ao se apaixonar por uma colega, a bela Julia, e se voltar contra o poder vigente. Essa é a sinopse da primeira adaptação da obra seminal de George Orwell para quadrinhos, de autoria de Fido Nesti, publicada pela Quadrinhos na Cia, o selo de quadrinhos da Companhia das Letras.
Toda adaptação evoca a tentação da comparação com a obra original e seus clichês, “o livro é melhor que o filme”. Nem sempre.
Se eu mencionar Laranja Mecânica, que nome lhe vem à mente? Stanley Kubrick ou Anthony Burgess? Eu sei a resposta.
O 1984 do quadrinista Fido Nesti vai por outro caminho. Selecionando longos trechos da obra de Orwell, traduzindo-os em imagens. Impossível esquecer de Orwell durante a leitura, de lembrar que é uma adaptação de um livro. Foram vinte meses de trabalho, entre o autor entrar em contato com a obra que o marcou na juventude e finalizar o nanquim a cor.
Nesti leu 1984 aos 13 anos, em 1984, quando o Brasil rumava para a redemocratização após duas décadas de Ditadura Militar. Nas palavras de Nesti, “Lembro de ter ficado impressionado, como se um alarme tivesse disparado dentro da minha cabeça. O Brasil ainda estava na Ditadura Militar, então foi inevitável minha identificação com boa parte do texto”. É possível perceber o impacto dessa leitura precoce no peso das palavras de Orwell e na sua tradução por Nesti em imagens (aliás a face de Winston é a de Nesti), em que se utiliza dos 22 Quadros de Wally Wodd com maestria.
A sina de 1984 parece ser a de não perder a atualidade. Em 2017 a assessora de Donald Trump, Kellyane Conway, justificou as falsas estimativas de Trump sobre o número de presentes em sua posse utilizando a expressão “fatos alternativos” e o livro de Orwell disparou quase que imediatamente como um dos mais vendidos.
Orwell encara a manipulação da verdade, dos fatos históricos, como uma ameaça à sanidade, àquilo que dá sentido à própria vida. A mentira institucionalizada propagada pelo Partido em 1984 nega qualquer possibilidade de liberdade de pensamento.
Ainda que atuais, as preocupações de Orwell devem ser atualizadas. Em 1984 era o Partido, um grande emissor que controlava as mentiras e as distribuía, um grande vigia que oprimia a população, o Grande Irmão.
Mas no século 21 as coisas tornaram-se mais complexas. As mentiras não são propagadas mais por um único grande emissor e impostas à população, mas produzidas especificamente para um determinado público-alvo para ir ao encontro daquilo que este já pensa, já crê e já sente e são as pessoas que compõem esse público que as disseminam. Não existe mais um grande vigia, uma grande entidade como o Grande Irmão, mas as próprias pessoas concordam em ceder suas informações para algoritmos que calculam e enviam mentiras específicas para grupos específicos, alinhadas às visões de mundo dessas pessoas.
Dito em outras palavras, como enxergar a verdade quando a mentira vai exatamente ao encontro dos próprios preconceitos e limitações, quando a mentira é feita exatamente sob medida para encaixar-se à própria visão equivocada da realidade?
É por propiciar reflexões como estas que a obra de Orwell permanece atual, com seu impacto amplificado pelas potentes imagens de Fido Nesti.
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