Verdade, ódio e política – dicas de leitura

Três quadrinhos que refletem sobre esses tempos de notícias falsas, populismo, discurso de ódio, cancelamentos e fundamentalismos de todos os tipos.

As narrativas de super-heróis da Marvel e da DC são produzidas nos Estados Unidos, com personagens que foram criados lá em momentos diferentes da história daquele país. Esses contextos, tanto da criação dos personagens quanto da produção das histórias, influenciam no tipo de narrativa, no pano de fundo da aventura, etc. É por isso que as questões sociais e políticas dos EUA são tão presentes. Mesmo que elas não sejam o assunto principal de uma aventura do Homem-Aranha ou de uma batalha do Superman, estão sempre ali.

Hoje a diversidade de vozes dos autores (de gênero, visão política, nacionalidade, etnia) é muito maior que em qualquer outro momento da história dessa indústria. Essa pluralidade de vozes aumentou a complexidade e as camadas das histórias. O desafio de falar com um público que é ao mesmo tempo local (EUA) e global, é grande, ao mesmo tempo os acontecimentos de diferentes lugares do mundo impactam o mundo todo por causa da velocidade da comunicação.

Aqui indico três trabalhos autorais de criadores que já trabalharam para a Marvel e a DC. Todos se inspiraram na crescente desinformação que ganharam visibilidade na disputa eleitoral de 2016 entre Donald Trump e Hillary Clinton:

Citzen Jack (Image Comics – 2016) – Sam Hamphries e Tommy Patterson

Sam Humphries escreveu algumas histórias secundárias do Planeta Hulk e uma série do Star Lord pra Marvel, além de mais recentemente o Lanterna Verde e o Asa Noturna pra DC. Em Citzen Jack, que tem apenas 6 edições e foi lançado meses depois de Donald Trump anunciar que seria condidato nas eleições de 2017, o tema é a corrida presidencial.

Em entrevistas, Humphries declarou que o conceito da história vem da ideia de que mais corruptos que os demônios do inferno, só os políticos. Com base nisso ele criou um personagem – Jack Northworthy – que é possuído por um demônio e concorre à presidência dos EUA. A postura do personagem perante a opinião pública é agressiva e preconceituosa ao extremo, seu discurso o vende com um anti-político que exalta o senso comum e se opõe ao academicismo.

O mote da campanha é “Get Jacked”, que é uma expressão que significa ficar chapado de drogas, mas na história é usado no sentido de apoio incondicional ao candidato. Num comício Jack incita seus apoiadores a derrubarem a porta da Casa Branca e invadirem o espaço do poder político dos EUA para tomar de volta as rédeas do país. Na sexta edição ficamos sabendo o resultado da eleição. Adivinhem quem é o novo presidente dos Estados Unidos?

 

Days of Hate (Image – 2018) – Aleš Kot e Danijel Žeželj

Aleš Kot escreveu a série sobre Bucky Barnes (Soldado Invernal), Vingadores Secretos e Pecado Original pra Marvel. Nas 12 edições de Days of Hate (Dias de Ódio), ele conta a história de um futuro próximo onde as animosidades entre esquerda e direita transformaram o território norte-americano numa zona de guerra.

A história gira em torno de um casal – Amanda Palmer e Huian Xing – uma é perseguida pelo governo por suas ações terroristas, a outra é acossada pelo agente Freeman para entregar sua parceira. O ritmo da narrativa é bastante cinematográfico. A edição 5 tem 3 painéis por página que mostram acontecimentos simultâneos que vão num crescendo até o desfecho. Muitas páginas sem nenhum diálogo e outras experimentações estéticas.

Ao mesmo tempo conta uma história muito pessoal, que envolve poucos personagens, Kot passa a sensação de uma guerrilha que toma as ruas e dá esperança às pessoas. Num dos monólogos mais longos da narrativa, uma das personagens diz que as sucessivas mostras de incompetência desse Estado, que prometeu aliviar os ressentimentos de quase metade da população, estão deixando todos cansados. As seguidas derrotas vão aumentando as dúvidas das pessoas sobre a escolha que elas fizeram.

Na edição 5 Kot cita Nelson Mandela: “Para a população e para o mundo uma rebelião deve ser vista como um movimento revolucionário. Para o inimigo deve parecer a revolta de alguns poucos indivíduos”.

 

The Department of Truth (Image – 2020) – James Tynion IV e Martin Simmonds

James Tynion IV é um dos grandes nomes dos últimos anos da DC, em títulos como Batman, Liga da Justiça, Mulher Maravilha, Hellblazer, etc. Em The Department of Truth (Departamento da Verdade), o mote é o limite entre realidade e ficção quando o assunto é teoria da conspiração.

Na história o agente Cole Turner, um estudioso desse tipo de teoria, descobre que os “fatos alternativos” (expressão utilizada em 1984 de Orwell) que explicam o assassinato do presidente Kennedy, a Terra plana, a chegada do homem à Lua e os reptilianos metamorfos, são todos verdade. E o Departamento da Verdade é a organização encarregada de encobrir tudo isso, reescrevendo a história.

Para Tynion a vontade de escrever uma história sobre a VERDADE e a possibilidade de relativizá-la, apareceu com a eleição de Trump. Numa entrevista ele afirma que, lendo sobre a história dos Estados Unidos, chegou a conclusão de que as teorias da conspiração são narrativas que buscam uma explicação diferente daquela que é apresentada como oficial porque a narrativa oficial também é um recorte da verdade. A conspiração ganha força porque as pessoas que não gostam da verdade (por não se sentirem representadas por ela, já que não escolheram o recorte), criam uma narrativa alternativa que diminui a sensação de desconforto em relação à narrativa oficial. Mas isso tem um preço, tanto para a narrativa oficial, quanto para a busca da VERDADE.

Como exemplo ele cita uma das teorias da conspiração que ele mais gosta, que é a chamada Hipótese do Tempo Fantasma. Segundo essa narrativa o calendário estabelecido pela Igreja Católica foi adiantado em 300 anos, portanto a Idade Média nunca aconteceu e agora estaríamos no ano 1720. Ele promete incluir essa teoria na história nas próximas edições.

A arte de Martin Simmonds lembra muito, mas MUITO MESMO o trabalho de Bill Sienkwicks em Elektra Assassina (1986). Será que eles são a mesma pessoa? Ou será que ainda estamos na década de 1980?

Um é o Bill Sienkwicks e o outro é o Martin Simmonds, mas e se a verdade for outra?

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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Uma resposta para Verdade, ódio e política – dicas de leitura

  1. GDD disse:

    Gosto muito de ler sobre as teorias da conspiração, o que me despertou a curiosidade de ler foi o The Department of Truth, e de ver a visão do autor, pois quando se trata em teorias da conspiração, ao menos eu, me inclino a não acreditar devido ao absurdo que isso muita das vezes é. Talvez eu possa sentir o que aqueles que acreditam nessas teorias sentem. Gostei da dica e parabéns pelo texto.

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