A Marvel e o manto do Pantera Negra

Não basta substituir Chadwick Boseman.

O luto dá chance para (re)descobrir aqueles que partiram. Depois de deixar este plano, Chadwick Boseman vem mostrando o significado de ser régio de verdade. O silêncio sobre a enfermidade, a perseverança que manteve ao longo de sua participação na produção de filmes supera as proezas até mesmo do Pantera Negra. Agora, o legado que ele projetou no universo cinematográfico da Marvel se tornou uma responsabilidade que vai além do entretenimento.

Não demorou para os fãs pleitear que Shuri, interpretada no cinema por Letitia Wright, tome o manto do herói como a nova Pantera Negra. Afinal é a forma mais natural de respeitar o legado tanto de Chadwick Boseman quanto do personagem T’Challa, sucedido pela irmã diversas vezes nos quadrinhos.

Pode ter passado despercebido para muitos, mas no que se refere à manutenção do seu espólio, a Marvel Studios é praticamente à prova de balas. Não há abalo, como a troca de atores, que comprometa a continuidade dos filmes. Desde que direcionou seus esforços ao cinema com Homem de Ferro (2008), a companhia teve o cuidado de semear um “plano B” para cada novo personagem original que era apresentado.

Até este ano, foram nove filmes que traziam personagens inéditos, sem contar aqueles que incluíam mais heróis além do protagonista (como a Viúva Negra, apresentada em Homem de Ferro 2, e o Gavião Arqueiro, inserido no enredo de Thor).

Dito de outra forma, cada filme, cada herói, tinha um potencial substituto, fosse um sidekick, um colega, um seguidor ou amante do personagem. Se timidamente Thor se comparava com Heimdall (interpretado por Idris Elba), logo mais será sucedido por Jane Foster (Natalie Portman) em Thor – Love and Thunder, previsto para fevereiro de 2022. Bucky já tinha recebido uma dose do mesmo soro que transformou o Capitão América, até antes de Steve Rogers conhecer Sam Wilson, o Falcão, em Capitão América 2 – O Soldado Invernal (2014). Em 2008, Amadeus Cho, o Hulk Totamente Incrível dos quadrinhos, ganhou uma pizza de Edward Norton, que vivia o Hulk; nem um nem outro, Norton foi impiedosamente trocado por Mark Ruffalo como Bruce Banner. Pode ser exagero, mas em cada cena o Dr. Estranho era quase sem graça perto do Wong, que pode assumir a guarda do Olho de Agamoto ao menor problema. E quem acharia ruim se o próximo filme do Homem-Formiga tivesse mais tempo de cena com Luis do que Steven Lang?

Give that man a suit!

Ainda em 2008 havia uma insinuação direta de James Rhodes, então interpretado por Terrance Howard, em vestir a armadura do Homem de Ferro, o que virou realidade nos filmes seguintes. Como investimento é bem sensato.  Robert Downey Jr., até aquele momento, não emplacava um sucesso há anos, e era mais lembrado nos tablóides por escândalos ligados ao abuso de drogas do que por seu talento como ator.

Já em 2019, um MCU já bem azeitado e a todo vapor trouxe, além da Capitã Marvel, Monica Rambeau, ainda criança. Todo fã de quadrinhos sabe, ela se tornará Fóton, ora sidekick, ora substituta da Capitã Marvel. Mas diferente dos filmes iniciais, essa inserção da personagem foi algo orgânico, componente do enredo e que somou sentido à história contada naquele filme.

Liderado por Kevin Feige, o MCU, essa máquina lucrativa de fazer filmes, tem uma retaguarda bem abastecida. São 60 anos de histórias em quadrinhos, arcos, sagas e personagens. Propriedades intelectuais testadas e recalibradas para atender diversos segmentos. Vale dizer, comparado com o cinema, o mercado de quadrinhos é um péssimo negócio, pois gera menos dividendos a curto prazo do que os custos de sua produção. No entanto, os lucros a longo prazo graças à venda de direitos autorais, com encadernações de sagas ou quando transpostos para o cinema, por exemplo, são milionários. Agora, o caso de Pantera Negra é especial.

Após a morte de Chadwick Boseman, o diretor Ryan Coogler publicou uma declaração no site da Marvel. Sobre trabalhar com o ator e a oportunidade que o filme de 2018 trazia, ele contou o seguinte:

Nós sempre falávamos de herança e o que significa ser Africano. Enquanto preparávamos o filme, ele pensava sobre cada decisão, cada escolha, não apenas como elas iam refletir nele, mas como essas decisões iriam reverberar. “Eles não estão preparados para isso, para o que estamos fazendo…” “Isso é Star Wars, isso é Senhor dos Anéis, mas [feito] para nós… e mais grandioso!” Ele me dizia isso enquanto tentávamos terminar uma cena dramática, fazendo dupla hora extra. Ou enquanto ele fazia as próprias cenas de luta, coberto de tinta. Ou caindo em água gelada e colchões de espuma. Eu concordava e sorria, mas eu não acreditava nele. Eu não tinha ideia se o filme ia funcionar. Eu não tinha certeza do que estava fazendo. Mas agora eu olho e percebo que Chad sabia de algo que todos ignorávamos. Ele estava enxergando a longo prazo. Tudo enquanto se empenhava. E ele se empenhou.

Chadwick Boseman viu e entendeu a singularidade do seu trabalho. Diferente de qualquer obra de quadrinhos, o herói Pantera Negra nasceu sob o signo do ativismo, de um posicionamento, de uma atitude em relação a uma situação presente tanto nas hqs quanto no nosso mundo: o racismo. À primeira vista, talvez haja quem não tenha identificado os sinais desse posicionamento no filme. Hoje, repetida à exaustão, a frase proferida por T’Challa/Boseman diante da ONU não dá espaço para dúvidas:

Em tempos de crise, os sábios constroem pontes, enquanto os tolos constroem muros”

Emprestando o nome do movimento nascido em Oakland, na Califórnia, o herói Pantera Negra se veste com os tons do engajamento político. Se antes ele era restrito às observações acadêmicas ou fosse meramente marginal, ao se transformar em filme, ocupou um espaço que precisava ser tomado. Ganhou rosto e acesso, foi visto e reconhecido por quem escolhe não ver ou por aquele que precisava de um herói para se inspirar. E isso é difícil substituir.

Trata-se de um paradoxo bastante debatido, estudado por Theodor Adorno e Max Horkheimer em A Dialética do Esclarecimento. Ao esclarecer certos elementos da cultura, ao torna-los presentes no debate público e elevar o grau de consciência sobre determinado fenômeno, uma obra traz um efeito colateral potencial: o esvaziamento da elucidação que antes provocou. No caso, re-mistificando o racismo ao reduzi-lo a “apenas ficção” do filme.

Na vizinhança do assunto, ao alienar o racismo de outras esferas de convívio, vale lembrar as reflexões de Silvio Almeida sobre a concepção individualista do termo:

O racismo, segundo esta visão, é concebido como uma espécie de ‘patologia’. Seria um fenômeno ou psicológico de caráter individual ou coletivo atribuído a grupos isolados; ou ainda uma ‘irracionalidade’, a ser combatida no campo jurídico por meio de aplicação de sanções civis – indenizações, por exemplo, ou penais. Por isso a concepção individualista pode não admitir a concepção de ‘racismo’, mas somente de ‘preconceito’, a fim de ressaltar a natureza psicológica do fenômeno em detrimento de sua natureza política. Sob este ângulo, não haveria sociedades ou instituições racistas, mas indivíduos racistas que agem isoladamente ou em grupo. […]

No fim das contas, quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos meramente comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados ‘homens de bem’.” (ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural. 2018, pp. 28-29)

Desde sua origem os quadrinhos são uma linguagem marginal, barata, planejada para escapismo e entretenimento. Arrisca-se dizer, eles ocupam espaços de prestígio artístico na medida em que geram novos leitores ou quando transpõem seus nichos de público e gênero. Ao migrar para o cinema, o Pantera Negra cumpriu este papel. Uma resenha tardia diria que equilibrou uma postura afirmativa, entretenimento e vigor artístico.

Diante deste paradoxo, produzir obras de entretenimento sem desviar do signo da atitude afirmativa, resta saber qual caminho que a Marvel irá seguir em relação ao herói. E custará caro se ela for menos zelosa sobre o futuro do Pantera Negra do que ela costuma ser com os atores que contrata. O pior desfecho será recuar a uma coisa ou outra, abrindo mão da serenidade que Chadwick Boseman inspirou todos a alcançar.

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2 respostas para A Marvel e o manto do Pantera Negra

  1. 4ndr3 disse:

    Faltou pesquisa e conhecimento dos personagens nos quadrinhos.
    Amadeus Cho não é o Imortal Hulk, esse é o próprio Banner.
    Mônica Rambeau nunca foi substituta, muito menos sidekick de Carol Danvers. Ela foi a primeira Capitã Marvel, e é uma personagem muito mais rica que Carol Danvers, chegando até mesmo a liderar os vingadores.

    • Velho Quadrinheiro disse:

      Olá 4ndr3!!

      Sobre Amadeus Cho, tem razão! Alterado para o Totalmente Incrível Hulk! Valeu.

      Sobre a Capitã Marvel, nem Monica Rambeau nem Carol Danvers chegaram a um consenso sobre quem é dona do nome, o que virou debate na série com roteiros da Kelly Sue Deconnick em 2014.

      Concordo, Rambeau é bastante nuançada. A liderança nos Vingadores foi um dos aspectos mais interessantes em Vingadores Versus X-Men de 1987. Parece que revitalizar Carol Danvers começou com os roteiros do Brian Michael Bendis em Vingadores: A Queda, lá por 2004. Tenho a impressão que Kelly Deconnick foi indicada para aquela nova série de Carol Danvers para a transformar numa versão da Mulher-Maravilha da Marvel, o que culminou com o filme.

      O ponto trazido aqui é que independente da origem, sidekick, amigo, parente, ou quem tenha usado o nome 1o, cada herói lançado para o MCU tem um substituto.

      Abraços.

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