Quando o consenso é inalcançável, sobre o que ninguém é capaz de discordar?
Algo pra pensar: quando o consenso é inalcançável, sobre o que ninguém é capaz de discordar? Qual é aquele ponto de escape, aquela roda de conversa que todo mundo toma parte e exige rugir (ou mugir?) opinião?
Há que se ir além do “tá frio hoje né?”, aquele assunto que vem depois do bom dia e logo antes de falar mal do chefe. Nos dias de outrora, nos tempos do monopólio da TV aberta, as novelas até poderiam ocupar o posto. Mas que criança, adulto, homem, mulher, rico ou pobre, tinham tempo e saco de ver os mesmos folhetins?
De um lado a outro das Tordesilhas, desde a Copa de 58, a resposta podia ser “futebol”. Há quem um dia encontre pessoa que ignora a data do próximo jogo da rodada, afinal esta é a “terra do futebol”.
MAS, pela experiência deste sítio digital sem cerca nem arame, diria que se tem um assunto que atravessa todos feito agulha de adamantium é o herói. Pode ser da graphic novel, história em quadrinho, banda desenhada, gibi, da forma que você achar mais correto, mas não há quem fique de fora de algo que ele orbita. Pode ser série, filme, música, livro, jogo ou documentário, a figura mítica do herói, esse elo entre a nossa humanidade jeca e a mais altiva divindade, inspira, acolhe, direciona, organiza e dá sentido àquilo que antes habitava nosso tênue imaginário.
Vovó ficaria orgulhosa se eu fosse quem percebeu isso, mas a verdade é que muita gente já se meteu a pensar no assunto. Existe uma tendência da historiografia dedicada a este estudo, um kati acadêmico chamado História das Mentalidades, liderado por gente graúda como Jacques LeGoff, Phillipe Arier, Marc Ferro e Roger Chartier.
Sem risco de exagero, a mentalidade de um povo se compõe pelas referências que tem em comum. Um imaginário compartilhado organiza e dá significado a experiências que não existiriam se determinadas imagens, certo temas, não fossem produzidos. Dito de outra forma, os heróis compõem a mentalidade e o imaginário dos tempos.
Na ressaca do último Oscar, que deu estatueta pro Joaquin Phoenix como o Coringa, penso aqui quais eram os heróis mais populares naqueles anos que marcaram o início das Eras dos Quadrinhos. Que obras compõem o imaginário de uma época?
Pra responder, fiz uma listinha, sem intenção de conclusão, usando duas fontes razoavelmente confiáveis: IMDB e Wikipedia.
Era de Ouro
1938 é o ano do lançamento da Detective Comics n.1 e a primeira vez que o Superman surgiu nos quadrinhos.
1º colocado em bilheteria no cinema americano naquele ano?
E quem ganhou o Oscar?
Era de Prata
Aberto à discussão, aqui consideramos 1956 como o início da Era de Prata com o lançamento da Showcase #4.
O filme mais popular do ano:
E o vencedor do Oscar foi:
Era de Bronze
A Era de Bronze dos quadrinhos marca aquela superação dos heróis mais “quadrados” da Era de Ouro e Prata. Símbolo do período foi a revista assinada por Neal Adams e Dennis O’Neil, Green Lantern Vol 2, n. 76, de 1970.
O maior sucesso de bilheteria daquele ano foi:
Love Story: Uma História de Amor
Já o Oscar foi para:
Era de Ferro
Por várias razões, 1986 foi um dos anos mais significativos para a cultura nerd. Dentre elas, marca o lançamento de Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller e Lynn Varley, um grande marco da Era de Ferro.
O filme mais assistido do ano foi:
Já o vencedor do Oscar foi:
E o que isso significa? Arrisco algumas hipóteses:
Na Era de Ouro o imaginário guardava medos diferentes, da guerra (mote do filme A Epopéia do Jazz) e do choque cultural entre ricos e pobres (tema do filme Do Mundo nada se Leva). Lembrando que os Estados Unidos não tinham entrado na 2ª Guerra Mundial antes de 1941.
Na Era de Prata o imaginário era influenciado por um dos temas mais épicos da narrativa bíblica (o êxodo liderado por Moisés) e ao mesmo tempo por fantasias científicas, o conto de Julio Verne e a viagem espaço-dimensional do Flash. O tema comum parece ser “fuga”.
Na Era de Bronze o imaginário era inspirado por parcerias de caras durões, gente como Patton, Lanterna Verde e Arqueiro Verde. Mas ao mesmo tempo parece um olhar “pra dentro”, das contradições sociais, tema de uma História de Amor e do gibi do Lanterna Verde.
Na Era de Ferro, o imaginário do cinema popular, do cinema premiado e dos quadrinhos parecem um coral, um uníssono masculino: doentios, obcecados, a guerra está dentro e fora dos heróis.