Quadrinheiros cutucam: “Direita” e “Esquerda” em O Senhor dos Anéis

Porque só se equilibra quem sabe cair.

Volta e meia, surge mancebo incauto, confuso ou apenas curioso que, sendo sincero pra si e os seus, admite que não sabe muito bem de onde veio esse papo de “direita” e “esquerda” na hora de pensar política. Suspeita, porém, que no extremo de cada lado só tem safado bandido que merece cadeia, conforme bradou o tio bêbado na ceia de Natal.

Mas de onde vem essa divisão que, política afora, só tem importância na preferência de cruzamento? Qual é a diferença entre os dois lados?

Para você, piloto de casa, bom lembrar que a prioridade no cruzamento é de quem vem à direita

Fera, fica frio. A gente ajuda a esclarecer usando aquilo que você conhece: nerdismo, fantasia e ficção científica.

Como o tema é longo, vamos começar com um lado.

Pode ser “direita”? Pode.

“- Pode ser usando Senhor dos Anéis?”, diz você.

Bora, Senhor dos Anéis.

Os filmes de Peter Jackson, lançados em 2001 (A Sociedade do Anel), 2002 (As Duas Torres) e 2003 (O Retorno do Rei) apresentaram pra muitos o imaginário do folclore medieval europeu. Você sabe do que falo. É aquele mundo de reis e rainhas, princesas, cavaleiros, dragões, elfos, duendes, bruxos e objetos mágicos.

O autor dos livros, John Ronald Reuel Tolkien, linguista britânico, buscou inspiração nas versões de diferentes contos e narrativas medievais, obras como Beowulf e o Anel dos Nibelungos. Os três livros, Sociedade, Torres e Retorno, foram publicadas pela primeira vez entre 1954 e 1955. Eles são uma continuação de O Hobbit, lançado em 1937.

Se você leu, em cada capítulo, Tolkien deixava bem claro: a Guerra do Anel se confundia com um processo de “deterioração” das raças. Ou melhor, era provocada pela corrosão da “pureza” das linhagens mais refinadas.

Era como se o tempo dos grandes feitos de homens e elfos mais fortes, mais sábios e mais puros estivesse a caminho do fim. Num tom de melancolia nostálgica era como se Aragorn e seus companheiros fossem descendentes menores das lendas de um passado distante, antes do fraquejar de Isildur, antes da ganância corromper o rei dos homens.

Quer exemplo? Narrava Elrond durante o conselho que decidiria o destino do Um Anel:

“… a Oeste, aos pés das Montanhas Brancas, construíram Minas Arnor, a Torre do Sol Poente. Ali, nos pátios do Rei nasceu uma árvore branca, da semente que Isildur trouxe através das águas profundas, e a semente dessa árvore tinha antes vindo de Eressëa, e antes ainda do Extremo Oeste, no dia antes dos dias quando o mundo era jovem.

– Mas com o rápido passar dos anos na Terra-média, a linhagem de Meneldil, filho de Anárion, acabou, e a Árvore enfraqueceu, e o sangue dos habitantes de Númenor se misturou com o de homens menores. Então a guarda sobre as muralhas de Mordor adormeceu, e seres escuros se esgueiraram de volta para Gorgoroth. E em certa época seres maléficos avançaram, tomando Minas Ithil e ali permanecendo, transformando-a num lugar de terror; e agora é chamada de Minas Morgul, a Torre da Bruxaria.” (TOLKIEN, J.R.R.. O Senhor dos Anéis – Edição Comemorativa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 254-255)

Se não ficou claro, a ideia é que os primeiros homens de Númenor, os heroicos antepassados de Aragorn, com o tempo, misturaram seu sangue com “homens menores”, enfraquecendo a linhagem destes guardiões. Isso teria permitido o mal se esgueirar e prevalecer em cidades capitais da Terra Média.

“Prefiro ficar olhando.”

Essa forma de descrever o passado garante tensão, drama, envolve o leitor na tragédia épica que será a Guerra do Anel. Elrond, senhor de Valfenda, prevê o fim da presença dos elfos na Terra Média e anseia partir para o Oeste. Aragorn precisa redimir sua família. Os hobbits não têm muitas esperanças de sobreviver. Estes elementos, reunidos, conduzem os personagens à uma morte certa. Ora, se o fatal é inevitável, que ele seja revestido de glória por meio de atos de coragem, e de sacrifício, em suma, pelo combate.

“MORTE PORR***********!!!”

Como fantasia, como folclore, nada demais. Mas como posição política, hereditariedade de valores, força e poder transmitido (ou enfraquecido) pelo sangue, a veneração pela linhagem, dinastias e tradições, estes são temas mais defendidos pela direita.

“COROI VELHOOO!!! Tolkien era de DIREITA??”

Antes de você rotular o autor, melhor lembrar porque é direita e esquerda, não em cima, embaixo, etc.

Você já deve ter ouvido falar, “direita” e “esquerda” se referem aos lados que os deputados da Assembleia Nacional Constituinte se sentavam após o início da Revolução Francesa, entre 1789 e 1792. Simplificando muito, essa Assembléia tinha a atribuição de fixar impostos, determinar gastos, ratificar tratados e declarar guerras. Os deputados eram eleitos indiretamente a partir dos municípios e se dividiam em três grandes grupos:

Os Jacobinos, segmento formado pela burguesia menos abastada da França. Eram profissionais liberais, médicos, advogados, escritores, músicos, artesãos. Eram anti-monarquistas agressivos, constitucionalistas e defensores extremados dos direitos dos homens e do cidadão. Em menor número entre 1789 e 1792, eles se sentavam à esquerda da Assembléia.

Os “planíce” ou “Marais”, eram aqueles que representavam uma razoável maioria nas sessões da Assembléia. Dependendo do tema em questão, ora votavam a favor dos Girondinos, ora a favor dos Jacobinos. Essencialmente eram republicanos, conciliatórios, contra os extremos que eram realizados em momentos diferentes do processo revolucionários. Ficavam assentados ao centro da Assembléia.

Girdondinos era o nome dado à burguesia ilustrada, ligada à administração jurídica e financeira. Assim como os demais membros da Assembléia, os Girondinos eram plebeus, mas dotados de bens financeiros e propriedades, enriquecidos pelo comércio Atlântico e aliados da Igreja Católica. Inicialmente, eram comprometidos com os ideais revolução francesa, contra a autoridade absoluta do rei, especialmente em relação aos gastos públicos. Por outro lado, eram simpáticos à ideia de uma monarquia constitucional. Sentavam-se à direita da Assembléia.

“Faria Limer é a vó!!” Fonte

Entre 1789 e 1792 o rei Luis XVI participava das sessões da Assembléia, mas tinha apenas o direito de veto. Isso durou até a tentativa frustrada dele se mandar da França, descoberto, julgado e executado pelos jacobinos em 1793. Mas isso fica pra outro dia. O que pega aqui é localizar Senhor dos Anéis nessa zona toda.

Pense bem, quando Elrond lançava aquele papo de o “sangue dos habitantes de Númenor se misturou com o de homens menores” isso faria dele um cara de (a) esquerda, (b) direita ou (c) centro?

Copiando o manual da boa vizinhança de Rosenberg:

Se você assinalou a alternativa “a”, discordamos. Afinal, ele era saudoso de um tempo em que os elfos e homens, dotados do puro sangue, desfrutavam de poder, soberania e longevidade, conspurcada pelo tempo e casamento com raças inferiores. Força, para os Elfos, vem do sangue. A paz da Terra Média dependeria da aliança dos homens, quem sabe o suficiente para vencer Sauron.

Se você assinalou a alternativa “b”, concordamos. Nem a pau que Elrond ia considerar os direitos de cidadão dos Orcs, ogros, Uruk-Hais, Olog-Hais, ou da exploração dos Mumakils. Degenerados, mestiços das raças, todos merecem a morte.

“Bando de corrupto!!!”

Se você assinalou a alternativa “c”, discordamos, afinal, em nome da paz na Terra Média Elrond não parecia muito interessado em fazer tratados comerciais ou territoriais com Sauron sobre Minas Tirith, Moria, Bri ou tanto menos Valfenda.

Agora ficou mais claro?

Claro, isso aqui é só picaretagem disfarçada de coisa séria, mais voltada pra diversão do que o rigor. Se você quer aprender mesmo sobre direita e esquerda, sobre a Revolução Francesa e Senhor dos Anéis, pare já de acreditar em tudo que vê no Youtube e trate de enfiar seu nariz num livro que te leve a fazer mais perguntas.

Pra começar, sugiro alguns:

VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa. Ed. Unesp, 2012.

LEFEBVRE, Georges. 1789: O Surgimento da revolução francesa. Ed. Paz e Terra, 2019.

GRESPAN, Jorge. Revolução Francesa e Iluminismo. Ed. Contexto, 2003.

TEIXEIRA, Paulo Armando Cristelli. Magia e tecnologia a serviço da verdade “O senhor dos anéis” e a crítica a modernidade. DM. PUC-SP, 2011. Disponível no link https://tede2.pucsp.br/handle/handle/12694 Acesso em 21/01/2020.

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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2 respostas para Quadrinheiros cutucam: “Direita” e “Esquerda” em O Senhor dos Anéis

  1. jokamc disse:

    Ahahahhahaha! Perfeito!

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