Como 3% explica o Brasil: meritocracia, ideologia e ressentimento

Estamos imersos na realidade, mas só a ficção a torna perceptível.

 

 

 

Spoilers das 3 temporadas de 3% ao longo do texto. Você foi avisado.

A série criada por Pedro Aguilera teve o episódio piloto lançado no youtube em 2011 e, mesmo com a qualidade da produção, teve que percorrer um longo caminho até a série completa. Na descrição constava: “Buscamos um canal de TV interessado em viabilizar a temporada completa”. Foi só depois que a revista americana Wired fez uma matéria sobre o piloto que a Netflix interessou-se em viabilizar a produção. 

O tema central do piloto e da primeira temporada da série é O Processo. O mundo de 3% é dividido entre um continente de pobreza extrema, chamado simplesmente de Continente e o outro lado, um lugar de abundância chamado Maralto. O Processo é o meio pelo qual os habitantes do Continente vão para o Maralto, e apenas 3% dos candidatos são aprovados, daí o nome da série.

Jotagá Crema (um dos principais roteiristas da primeira temporada) escreveu boa parte dos episódios inspirado em sua experiência pessoal, primeiro em um colégio onde a competição por melhores notas é incentivada, depois ao ter de se submeter ao vestibular para uma universidade pública. Pedro Aguilera era colega de sala de Crema. Mas a crítica da série pode ser estendida a todo processo seletivo que todos nós alguma vez já nos submetemos, seja para um vestibular, para um emprego, para uma vaga qualquer.

A questão do Processo se desdobra para a ideologia que o sustenta, o mérito. Os habitantes do Maralto acreditam que são merecedores da abundância em que vivem por terem passado no Processo, e os habitantes do Continente se submetem a ele esperando um dia fazer parte da abundância. Como diz Michel Onfray:

O desejo mimético faz do escravo um guardião do templo onde comungam seus senhores porque ele espera, um dia, consequentemente em vão, participar dos banquetes, mesmo que só lhe deixem as sobras. (Michel Onfray, A Política do Rebelde, p. 99).

É necessário frisar que, no caso, há a esperança de passar ao lado dos Senhores e estar nos 3%. Porém, lembremos que a Esperança está guardada na Caixa de Pandora, que continha os males presentes no mundo. Por que a Esperança estava em uma caixa que só continha males?

Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens. (Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, aforismo 71)

A grande exceção é a Causa, um grupo de rebeldes que pretende acabar com o Processo, infiltrando um de seus membros, Michele, personagem principal, no Maralto. Ainda que uma das motivações de Michele seja reencontrar seu irmão, a questão são as duas ideologias contrárias, a do Processo e da Causa, que fica mais interessante quando, ao final da primeira temporada, descobre-se que todos os habitantes do Maralto são esterilizados, levando a ideologia do mérito daqueles que passam pelo Processo até às últimas consequências, ou até seu limite lógico, daí a necessidade de se recrutar os habitantes do Continente.

Não há herança, em seu sentido literal ou figurado, no Maralto. A igualdade de oportunidades é representada pelo Processo, todos são iguais em suas posições iniciais e a desigualdade é instaurada pelo mérito individual, o mérito de passar no Processo, de fazer parte dos 3% selecionados. O Maralto é uma utopia liberal e o Processo a sustenta. Qualquer semelhança com nossa realidade não é mera coincidência.

A propaganda da segunda temporada já anunciava que o conflito entre os dois lados seria continuado e aprofundado, com uma questão simples e direta: de que lado você está?

Exibida em 2018, talvez o ano da eleição presencial mais ideologicamente polarizada de toda nossa História (até agora), a pergunta da ficção ressoava de maneira profunda em nossa realidade e a questão ideológica é aprofundada e complexificada. A temporada termina com a perspectiva de uma alternativa à polarização do Maralto e da Causa, um terceiro lugar, onde haveria abundância sem exclusão, denominado de Concha.

A Concha é desenvolvida na terceira temporada. Lá há abundância sem necessidade de seleção e todos trabalham em uma comunidade, espécie, portanto, de utopia socialista, resumida no slogan: de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades.

Mas algo acontece e a Concha enfrenta o problema da escassez. A solução encontrada é instaurar um novo Processo. Paralelamente é revelado que, no passado, o Maralto enfrentou exatamente o mesmo problema de escassez e foi nesse ponto que a lei que esteriliza seus habitantes foi criada.  Porém já havia uma primeira geração de crianças no Maralto. O que fazer com elas, uma vez que não passaram pelo processo, sendo seu único “mérito” terem nascido lá?

Ponto de inflexão da história: as crianças são expulsas e deverão passar pelo Processo quando chegar o momento, dentre elas a filha do Casal Fundador, líderes do Maralto. A filha do Casal Fundador não consegue ser aprovada e, em seu ressentimento e frustração, funda a Causa. Também movidos por ressentimento e frustração, aqueles que não conseguem passar pelo Processo da Concha decidem tomá-la.

As questões ideológicas começam a tangenciar as psicológicas. Ressentimento e frustração são forças políticas poderosas. Nas palavras de Nieztsche:

Pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente; ainda mais especificamente, um agente culpado suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar seus afetos, em ato ou in effigie [simbolicamente]: pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie. Unicamente nisto, segundo minha suposição, se há de encontrar a verdadeira causação fisiológica do ressentimento, da vingança e quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor através do afeto. (Nietzsche, Genealogia da Moral, p. 116).

Necessário constatar também que as forças políticas movidas pelo ressentimento e frustração só podem desembocar em destruição. Talvez por isso a terceira temporada aponte para o equívoco das polarizações ideológicas, ressaltando a importância dos laços afetivos rompidos por essas disputas, algo que certamente todos nós experimentamos recentemente.

Infelizmente 3% foi melhor recebido lá fora do que aqui dentro, mais uma expressão de nosso complexo de vira-lata. Mesmo assim, é salutar poder ver uma ficção científica de qualidade produzida por brasileiros que dialoga diretamente com nossos problemas mais atuais e relevantes.

Sobre Nerdbully

AKA Bruno Andreotti; Historiador e Mestre do Zen Nerdismo
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3 respostas para Como 3% explica o Brasil: meritocracia, ideologia e ressentimento

  1. Ricardo disse:

    A questão da recepção ruim aqui talvez seja porque somos melhores críticos em nosso próprio idioma. Vi apenas a primeira temporada e a atuação dos atores era compatível com Malhação e novelas da Record.
    Depois desse artigo talvez eu dê uma nova chance.

    • Nerdbully disse:

      Cara, dê sim. A série é boa. De fato temos algumas atuações nível Malhação, mas temos também atuações primorosas como a de João Miguel (Ezequiel) e de Laila Garin (Marcela). Abraço.

  2. Pingback: Teocrasília: o Brasil como distopia | Quadrinheiros

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