Das histórias que não se deve esquecer: ATIRE, de Warren Ellis

O ataque a escola de Suzano traz à tona a história quase não publicada de Warren Ellis com John Constantine.

Escrita por Warren Ellis e desenhada por Phil Jimenez, Atire causou polêmica dentro da DC por tratar de assassinatos com armas de fogo dentro de escolas e ter lançamento estimado pouco depois do Massacre de Colombine nos EUA (1999), embora obviamente tenha sido escrita e finalizada anteriormente.

Paul Levitz, escritor, roteirista e então executivo da DC, exigiu que a história fosse modificada. Ellis foi terminantemente contra e isso causou sua saída prematura do título Hellblazer. A história teve sua publicação suspensa até ser resgatada em Vertigo Resurected (2010), sendo lançada aqui pela Panini em Vertigo Especial 1 (2013) e relançada em John Constantine: Hellblazer vol.2 – Histórias Malditas (2018).

A história começa com escolas sendo atacadas por alunos e ex-alunos armados. Uma pesquisadora que investiga os acontecimentos percebe que alguém está sempre próximo dos locais que foram atacados e esse alguém é John Constantine. É iniciada uma caça pelo Mago, para entender se ele possui alguma ligação com os acontecimentos. Com o passar da história é descoberto que Constantine não está envolvido na motivação dos ataques, porém ele tem uma possível resposta para o que gera o problema.

Em uma conversa com a pesquisadora ele revela o que pensa sobre isso. Um mundo sem perspectiva, de jovens que são jogados em grandes depósitos, lugares em que a saúde mental da juventude não é considerada. Constantine aborda o descaso da escola com seus alunos, pessoas que sofrem diversos problemas que nunca são abordados como deveriam, tanto a desigualdade social vivida por aquelas pessoas, quanto a violência sofrida na escola ou até mesmo a falta de perspectiva que aquele lugar apresenta. Isso faz com que os alunos fiquem em um estado de constante instabilidade emocional e psicológica.

Outro ponto é o acesso as armas para os cidadãos, pessoas com pouca perspectiva de vida e ódio reprimido com acesso fácil a armas de fogo – instrumentos feitos única e exclusivamente para a violência, a morte. Essa é a soma explosiva que já causou tantos ataques nos EUA. O país que está praticamente habituado a esse tipo de situação, que procura solução nas próprias armas com ideias de capacitar professores e ou manter seguranças armados dentro das escolas. Infelizmente a solução por meio de mais armas nunca mostrou-se efetiva o suficiente para que os ataques possam acabar.

O fato de ataques em escolas existirem com tanta frequência demonstra mais um problema estrutural do que a ineficácia em deter os assassinos. Assim como Constantine observou, o descaso tanto com a estrutura escolar quanto com a saúde mental dos alunos são alguns dos motivos de criarmos uma sociedade doente que produz indivíduos capazes de tais atrocidades.

Em um texto do Nerdbully sobre o mangá Prophecy ele cita um possível quadro que explica esse tipo de comportamento violento e extremo. O texto O perdedor radical – ensaio sobre os homens do terror, escrito por Hans Magnus Enzensberger, mostra o conceito do perdedor radical. O capitalismo cria perdedores em massa e o perdedor radical só se identifica de tal forma quando observa os “vencedores” do capitalismo, percebendo que não é um deles e desejando ser.

O perdedor radical já teve um momento de glória e de uma forma arrogante deseja manter-se em um estado de superioridade, procurando assim um bode expiatório para culpar (sociedade, grupo de pessoas, etc.) e nunca a si mesmo. O perdedor radical chega ao ponto de perder completamente o respeito pela vida, tanto a sua quanto das outras pessoas e quando supera sua solidão e encontra outros com as mesmas frustrações e ideias, eles identificam uma causa e lutam por ela com suas vidas e com as vidas dos outros.

Desta forma é possível observar que as características do perdedor radical estão associadas ao problema  do capitalismo que tanto Enzensberger quanto Ellis abordam. Pois a necessidade de mão de obra barata e feita para serviços braçais é necessária para a manutenção do sistema que vive da exploração o trabalho, sobretudo dos mais pobres. A escola é mais uma engrenagem nesse sistema complexo.

John Constantine não chega a uma solução definitiva, porém está claro pra ele que é o sistema quem está consumindo a sanidade e a vida dos jovens, eles imploram por algo mais até o ponto que desistem. O papel da escola de estocar futura mão de obra barata cria homicidas, suicidas, alienação e pessoas violentas com distúrbios mentais, e essa mistura aliada ao fácil acesso as armas de fogo tem como resultado casos como o de Columbine. John Constantine olha triste para mais crianças sendo perdidas em um mundo sem esperança e, como o Mago já disse em uma música de sua banda punk, “não morram pela Vênus do marketing”.

*

Infelizmente no dia 13/03/19 aconteceu um caso semelhante no Brasil. Dois homens invadiram uma escola na cidade de Suzano e assassinaram 8 pessoas a tiros, um dos atiradores foi morto pelo outro, que depois cometeu suicicídio. Há relatos, inclusive, de que um dos atiradores se inspirou no incidente de Columbine. Ainda que o caso tenha precedentes como o Massacre de Realengo (2011), o Brasil não está habituado a este tipo de situação.

A tragédia deixou a questão óbvia do uso de armas de fogo para ser explorada pelos oportunistas de plantão. Fora as condolências prestadas por todos, os comentários das autoridades brasileiras foram os mais retrógrados e ignorantes possíveis, com direito ao vice-presidente Hamilton Mourão culpando videogames pela tragédia. Inocentes, ignorantes ou também oportunistas, há ainda aqueles que querem negar a dimensão política da tragédia.

Para o General, inocentes, ignorantes ou oportunistas, Warren Ellis dá o seu recado pela boca de John Constantine:

Eu vejo um monte de crianças no pátio de um buraco qualquer em um condado de merda num estado em ruínas e sem nenhuma educação e esperança no futuro.

Para finalizar o genial Latuff escancara as similaridades das tragédias, escolares e governamentais, tanto de lá quanto de cá:

Sobre John Holland

Procurando significados em páginas de gibi enquanto viaja pelos trilhos do conhecimento e do metrô. Sempre disposto a discutir ideias e propagar os quadrinhos como forma de estudo, adora principalmente a Vertigo, está sempre disposto a conhecer novos quadrinhos e aprender o máximo de coisas possível!
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