Um olhar protestante sobre o herói católico.
Spoilers da 3a temporada do Demolidor a seguir. Siga por sua conta e risco.
A terceira temporada de Demolidor, disponível na Netflix desde o dia 19 de outubro parece ser mais sobre Matt Murdock do que sobre o demônio de Hell’s Kitchen. Baseado, em grande parte, na clássica saga A Queda de Murdock (Born Again), a história acompanha o advogado cego em uma espiral descendente de sua existência. Diferente dos quadrinhos de Miller e Mazzuchelli, porém, esta queda não se encontra tanto na desestruturação da vida de Murdock, mas na admissão de um estado existencial no qual a miséria humana se revela sem nenhum disfarce. Estado esse no qual ninguém parece ouvir os clamores por justificação, muito menos Deus.
Um dos grandes dramas que a civilização ocidental herdou da tradição religiosa judaico-cristã é o dilema denominado silêncio de Deus, que consiste na pergunta sobre o mal, que não obtém resposta daquele que supostamente poderia justifica-lo. Nesta terceira temporada do Demolidor, encontramos Matthew Murdock ressuscitando da explosão e do desabamento do prédio onde travou sua última batalha com Elektra em Os Defensores. Em consequência disso, além da cegueira que já possuía, ele agora está surdo e não consegue utilizar o sonar que fazia as vezes de sua visão. Ele está duplamente cego, mas, significativamente, ele não mais escuta. Pelo menos não com clareza. Ao não conseguir mais captar os sons do ambiente, ele se volta cada vez mais para dentro e, nessa interioridade, realiza um mergulho cego nas profundezas de sua existência. Isso o leva a enfrentar seus fantasmas e demônios interiores – principalmente Wilson Fisk e Jack Murdock (seu pai), que se manifestam de forma fantasmagórica – que o levam a conhecer melhor a si mesmo e à situação à qual suas escolhas o levaram. Mais do que isso, Murdock sente-se cada vez mais sozinho, sem ter em quem confiar ou com quem contar. Deus não mais responde e as trevas voltam a habitar a criação.
A queda como condição humana
O teólogo alemão Paul Tillich (1886-1965), que estudava as correlações entre religião e cultura afirmava que a unidade estilística das artes visuais do século 20 expressava, como em nenhum tempo anterior, a visão cristã reformada da condição humana: a realidade do pecado e da queda.
O termo “pecado”, na teologia reformada, denomina uma condição de vida marcada pela experiência da distância entre Deus e o ser humano, sentida na finitude, na morte e na escravidão às forças demoníacas. Ao mesmo tempo, a teologia reformada (qualquer sistema de crenças enraizado na Reforma Protestante) afirma que a iniciativa de salvação sempre é de Deus, mas que ela apenas se efetiva quando respondemos com a coragem da autoaceitação de nossa condição de pecadores angustiados e ansiosos por justificação.
Tillich percebia isso como expressão existencial fora do ambiente institucional religioso e, por isso, propunha a decodificação simbólica da cultura como tarefa da teologia, uma vez que as expressões existenciais humanas se dão exatamente no tecido cultural. Essa percepção de realidade é predominante em países anglo-saxões como os Estados Unidos e os super-heróis – personagens simbólico-mitológicos nascidos no seio da cultura estadunidense – groso modo não escapam desta visão de mundo.
No caso do Demolidor há um elemento diferenciado. Quando Frank Miller assumiu a autoria do personagem, houve uma grande ênfase em suas raízes católicas, onde a visão de pecado e queda são um pouco diferentes da visão reformada.
No ambiente católico fala-se mais em “pecados” do que em “pecado” e a questão é muito mais compreendida como uma série de atitudes que separam o ser humano de Deus do que como uma condição inerente à própria humanidade. Apesar de essa visão ter se modificado bastante a partir do Concílio Vaticano II (1962-1967), ela ainda persiste muito no senso comum, tanto de católicos quanto de quem observa a Igreja de fora. Nesse sentido, os diálogos entre Murdock e o Padre Lanton são bastante significativos, revelando toda a tensão entre a aceitação de uma condição decadente, inerente à própria humanidade e a busca por uma resposta para todas as aflições.
Há uma conversa em especial, mostrada em flashback, na qual o sacerdote ensina a um Murdock adolescente que Deus sussurra ao invés de gritar, sendo necessário tornar-se muito atento a esses sussurros divinos. Já adulto, Murdock diz ao sacerdote que aquilo que ele escutava das pessoas não era a vontade de Deus, mas o reflexo da própria miséria existencial destas pessoas.
Não é por acaso que Murdock confronta o mesmo sacerdote a respeito de nunca ter lhe revelado sobre sua mãe e sobre ter permitido que ela voltasse à congregação religiosa, deixando-o apenas com seu pai quando Matthew ainda era um bebê. Murdock está pedindo coerência a pessoas que, a princípio consagraram suas vidas à missão de deixar o mundo menos pecaminoso, sem ter a perspicácia de perceber que essas mesmas pessoas carregam tantos problemas e sofrimento quanto ele. Quer respostas e um caminho a seguir, que o leve para fora da espiral desesperançosa onde ele se encontra. Afinal, o próprio Murdock consagrou sua vida ao combate do crime e também veste uma espécie de hábito religioso, encarnando a figura de um demônio.
De uma forma ou de outra, tanto na visão reformada quanto na católica, a condição de pecado e queda carrega uma intrínseca relação com uma das menos compreendidas categorias teológicas do cristianismo: o mistério do mal. E nisso a terceira temporada de Demolidor acerta em cheio!
De forma geral, os arcos de todos os personagens transitam por essa dinâmica: tentações, queda, redenção e as consequências, salvíficas ou danosas, para cada um deles. E, nisso, voltamos ao silêncio de Deus: para aqueles que esperam por viradas miraculosas de um Deus intervencionista, pode haver o revés de tomar um ídolo – como Wilson Fisk – por ser onipotente. Para os que mergulham nas próprias trevas e abraçam o vazio, pode-se descobrir o espaço onde habita o Mistério de Mil Nomes (o mistério do nome de Deus), a partir do qual é possível readquirir a coragem de ser. Há muitos outros pontos a serem abordados em uma análise desta temporada do Homem sem Medo. Para mim, porém, esta conjunção narrativa sobre queda, pecado e redenção saltou aos olhos e resolvi expressá-la nesse texto. Espero ter podido contribuir com algumas inquietações.
* Renato Ferreira Machado é Doutor em Teologia e dedica-se à análise do campo simbólico religioso presentes nas seguintes produções artístico-culturais: histórias em quadrinhos de super-heróis, seriados de aventura, fantasia, terror e assemelhados e produções cinematográficas dos mesmos gêneros e cenas musicais underground, como o Punk e Pós-Punk Britânico, Punk e New Wave de Nova Yorque e música de protesto latino-americana.
Muito obrigado por abrir esse espaço de partilha. Como fã de vocês, fico honrado de poder publicar aqui no blog.
Renato, a honra é nossa. Obrigado por colaborar com um texto tão instigante.
Uau… grande análise da série.
Foi muito bom, achei que seria mais analítico, mas foi suficiente para deixar panorâmico e dá vontade de fazer as comparações contrastantes do homem sem medo que teve medo do silêncio. Parabéns
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