Rick and Morty: o escapismo já não é mais o mesmo

Se antes os desenhos animados eram garantia de um mundo reconfortante e colorido onde tudo, eventualmente, daria certo, hoje já não podemos dizer o mesmo.

Por Nathalie Lourenço*

Algumas excelentes séries de animação comprovam que sucumbir lentamente ao desespero e dar boas gargalhadas não são coisas incompatíveis. É o caso do original Netflix BoJack Horseman e também de Rick and Morty, uma produção do Adult Swim criada por Dan Harmon e Justin Roiland em 2013 e que estreou sua terceira temporada recentemente. 

A história, surgida a partir de um curta de Roiland (que eu recomendo fortemente não googlar, especialmente se você estiver no trabalho) que mostrava uma versão bem polêmica dos personagens Doc Brown e Marty, do clássico De Volta para o Futuro. A ideia, na época, era trollar os estúdios da Universal a ponto de receber uma carta de Cessar e Desistir – uma carta que pede a retirada do material do ar, sob pena de ação judicial. A coisa toda era ao mesmo tempo uma piada e um protesto, uma vez que Roiland havia recebido uma carta destas de Bill Cosby por conta de um problema semelhante.

Acontece que no meio do caminho, Roiland e seus amigos acabaram pegando gosto pelos personagens e desistiram da trollagem. Quer dizer, fizeram e publicaram o tal curta ofensivo mas mudaram os nomes dos personagens apenas o suficiente para evitar problemas legais. Ao receber a chance de criar uma série para o Adult Swim, o autor usou os personagens como base para a proposta que levou ao estúdio.

O resultado é Rick and Morty, uma comédia sci-fi recheada de humor negro, em que um cientista louco bêbado brilhante arrasta seu neto nada brilhante em aventuras pelo espaço e dimensões paralelas. Como não poderia deixar de ser (afinal estamos falando de uma série cuja própria premissa é uma sátira), os episódios de 22 minutos são recheados de referências que misturam Freddy Krueger, The Purge, Titanic e por aí vai.

Sob as cenas de ação, mundos casualmente destruídos, filhos mestiços de gente com alienígena e outros acontecimentos que fazem só mais um dia comum na vidinha monótona de Rick e Morty, damos de cara com questões incômodas. Por exemplo: os Meeseeks, uma entre muitas criaturas que surgem na série, são entidades que nascem com o intuito de resolver problemas simples. Ao ajudar a pessoa que o invocou, o Meeseek desaparece. Para ele, isso não é ruim. Pelo contrário. Existir, sem realizar o seu propósito é um sofrimento indizível.

O propósito é tema recorrente. Em uma cena, Rick cria um robô com a única função de trazer manteiga. O aparato questiona seu criador sobre o motivo de existir e ao receber como resposta “você passa a manteiga”, se desespera. Rimos da piada, mas quem nunca se sentiu assim ao pensar no que faz entre 9h e 18h, a cada dia útil?

Um Meeseek (o ser azul)

No meio desta existência desprovida de significado, as conexões humanas (ou alienígenas, dependendo do caso) são a única coisa que parece conter algum sentido. É claro que Rick, ácido até a medula, negaria (e nega) que exista qualquer laço afetivo. Sua explicação científica para levar o neto consigo nas aventuras é que a estupidez de um contrabalança a genialidade do outro, tornando-os invisíveis a radares inimigos. Será? Em meio a tantas realidades paralelas, haveria alguma outra criatura com a mesma burrice e mais utilidade que um garoto de 14 anos? Mas não. Ao descobrirmos que existe uma verdadeira cidade onde Ricks de todas as realidades se reúnem, vemos que cada Rick tem seu Morty. E cada Morty tem seu Rick.

Conforme os episódios transcorrem, parece haver uma certa dissolução do cinismo. Ao ficarem presos em um universo que remete ao Gato de Schroedinger, Rick abre mão do dispositivo que permite escapar dali, para que Morty retorne. Em outro, arranja briga com o próprio diabo em pessoa pela atenção da neta, Summer. Ao final da segunda temporada, vemos esse homem que diz não ligar para nada ou ninguém fazer o que parece ser o sacrifício máximo pela família. Para que Morty, Beth, Summer e Jerry não precisem levar uma vida de fugitivos por causa dele, Rick delata a si mesmo e é preso pela Federação Galática. Apenas para ter o gesto desmentido no episódio seguinte, após uma inacreditável fuga: Rick revela que tudo não passou de um plano para causar o divórcio de Beth e Jerry e continuar levando Morty em aventuras sem ninguém os atrapalhar (mas, cá entre nós, podemos realmente acreditar em algo que Rick diz? E desde quando Jerry é ameaça pra alguém?).

No fim, entre referências pop e piadas de arroto, Rick e Morty nos faz olhar para alguns assuntos dos quais preferimos desviar o olhar normalmente. E rir na cara do que nos assusta.

*Gosta de letrinhas em livros, quadrinhos e na sopa. De vez em quando, escreve umas groselhas aqui.

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Uma resposta para Rick and Morty: o escapismo já não é mais o mesmo

  1. Rodrigo disse:

    Eu não vejo, sinceramente, motivo algum pra ver um cartoon com esses dilemas e alfinetadas ao politicamente correto dos tempos atuais. Tenho mais o que fazer na minha prancheta. PS: o texto tá lindo e gostoso de ler!

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