Infernos femininos em The Handmaid’s Tale

Conheça a distopia de Margaret Atwood.

Por Nathalie Lourenço*

Começo este texto fazendo a pior proposta possível: entre em algum portal de notícias, procure uma atrocidade qualquer cometida contra uma mulher, de preferência algo que bote em dúvida sua fé na humanidade. Desça com o scroll até o inferno conhecido como caixa de comentários. Eu sei, desculpe fazer você passar por isso. Ali você irá encontrar os mesmos argumentos inevitáveis, afirmando que alguma-coisa-ela-fez-para-merecer-isso e até o bem-intencionado ocasional, lembrando que aquela mulher era a filha, irmã ou mãe de alguém (Não uma pessoa. A mãe, filha ou irmã de uma pessoa). Agora contabilize: quantos desses comentários foram feitos justo por mulheres? É provável que sejam muitos.

Pois bem, na série The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia), produzida pelo serviço de vídeos on demand Hulu, é como se essa caixa de comentários tomasse o poder após um súbito Golpe de Estado.

Baseado na obra de mesmo nome da escritora canadense Margaret Atwood (que conta com uma oportuna reedição em português e com previsão de uma adaptação para quadrinhos a ser lançada ainda esse ano), a série apresenta um universo onde a humanidade se tornou infértil: poucas crianças chegam a nascer, e, destas, um número menor ainda sobrevive. Um governo teocrático assume o poder e as poucas mulheres férteis são transformadas em Aias – servas cuja principal função é ser engravidada pelos líderes desse Estado, em um ritual baseado na história bíblica de Jacob, sua esposa Raquel e a serva Bila:

 Vendo que não dava à luz filhos a Jacob, Raquel começou a ter inveja da irmã e disse a Jacob: “Dá-me filhos ou, então, morro!” E Jacob irritou-se com Raquel e disse-lhe: “Julgas-me capaz de substituir Deus, que te recusou a fecundidade?” Ela respondeu: “Aqui tens a minha serva Bila; vai ter com ela. Que ela dê à luz sobre os meus joelhos; assim, por ela, eu também terei filhos.” Deu-lhe, pois, a sua serva Bila por mulher, e Jacob aproximou-se dela. Bila concebeu e deu um filho a Jacob.

Imagem da graphic novel pela artista Renee Nault que trabalha em parceria com a própria Margaret Atwood no projeto

Na República de Gilead, as mulheres não existem. Como no comentário bem-intencionado ali em cima, sua importância está ligada apenas ao papel que representam para os homens. Isso é especialmente evidente para as Aias, como descobrimos talvez nos primeiros minutos da série: elas têm seus nomes tomados e substituídos por uma variação do nome do chefe de domicílio a quem pertencem. Offred, Ofwarren e assim por diante. Poucas coisas podem ser mais emblemáticas da desumanização de uma pessoa que privá-la do próprio nome.

Mas acontece que ter a existência reduzida a um apêndice masculino não é exclusividade das Aias. No início da série, é fácil pensar que as esposas dos comandantes ainda preservam algum poder. Mas também elas são proibidas de ler, trabalhar e possuir qualquer coisa que seja delas. Ainda que uma pretenda controlar a outra, não são tão diferentes assim: enquanto as Aias se vestem de vermelho, as esposas usam azul. Não são nada mais que a esposa de alguém.

É interessante notar que, assim como vemos mulheres julgando, culpando e questionando suas iguais na boa e velha (ou ruim e atual?)  caixa de comentários, em The Handmaid’s Tale, as mulheres também são carcereiras de si mesmas. Não por acaso, durante o ritual religioso em que os comandantes tentam engravidar as Aias, são as esposas quem as imobilizam pelos pulsos. A um só tempo, as Esposas se ressentem pelas Aias possuírem uma fertilidade impossível para elas próprias e as amam por serem a única e preciosa oportunidade de poderem obter uma criança. A relação entre essas duas castas, presas sob um mesmo teto, é complexa a ponto de transformar um acontecimento corriqueiro, como a menstruação, em um ponto de tensão na trama.

O ritual

Da mesma forma, também são mulheres, as Tias, as responsáveis por transformar cidadãs livres em Aias boas, obedientes e, muitas vezes, mutiladas. Mesmo entre elas, são estimuladas a suspeitar uma das outras: qualquer um pode ser um Olho do governo, e a pena de morte por enforcamento é distribuída como doces no dia de São Cosme e Damião. O único lugar seguro que resta para expressarem seus reais sentimentos é a própria cabeça. Isso faz da narração interior de Offred um dos pontos altos da série, em contraste com seus diálogos tristes, feitos principalmente de frases feitas e ensaiadas, necessárias para sobreviver em um mundo onde a submissão torna-se estratégia de sobrevivência e todos são inimigos potenciais.

Uma Tia e uma Aia

Em um dos momentos mais carregados da série (evite ler esse parágrafo se não assistiu ainda), Offred se arrisca, contando a uma embaixadora mexicana as reais condições a que as Aias são submetidas, na esperança de que ela possa ajudá-las, apenas para descobrir que a intenção da visitante era trocar produtos de consumo por Aias para seu próprio país.

O que traz algum respiro para esse universo sombrio são as raras conexões que são feitas, breves momentos de confiança e cumplicidade onde todo o resto é paranoia. Uma pequena frase rabiscada por uma Aia anterior. Um aliado inesperado. Um reencontro. Ou, apenas, uma pedra não atirada. Vitórias que nos pareceriam irrelevantes se tornam grandiosas dentro de um contexto em que a liberdade é tão restrita. Como na frase de Ítalo Calvino, trata-se de reconhecer quem e o quê, em meio ao inferno, não é inferno – e preservá-lo.

Tudo em The Handmaid’s Tale é uma extrapolação de formas de pensar que estão vivas – e como – por aí. Talvez seja por isso que a obra seja tão desconfortável de assistir, uma verdadeira história de terror que só faz sentido sob a perspectiva de uma mulher. Porque, sob todo o exagero, existe um punhado de realidade.

*Gosta de letrinhas em livros, quadrinhos e na sopa. De vez em quando, escreve umas groselhas aqui.

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2 respostas para Infernos femininos em The Handmaid’s Tale

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