Humanismo e fronteira em Valerian

Dane DeHaab e Cara Delevingne como Valerian e Laureline na adaptação de Luc Besson

Conheça Valerian de Pierre Christin e Jean-Claude Mézières.

Infinitamente mais conhecida em seu país de origem que por essas bandas, Valerian acaba de ganhar uma edição em formato livro pela SESI-SP Editora, aproveitando o lançamento de sua adaptação para o cinema dirigida por Luc Besson.

Escrita por Pierre Christin e desenhada por Jean-Claude Mézières o quadrinho foi originalmente publicado na revista Pilote (uma das mais importantes da França, na qual também estreou Astérix, O Gaulês), para depois migrar para o formato album, sendo publicada de 1967 até 2010.

Obra de ficção científica com elementos de space opera (muito influenciada pela ficção científica dos Estados Unidos e autores como Isaac Asimov, Jack Vance e John Brunner), assim somos situados no mundo de Valerian:

“Ano 2720, Galaxity, capital da Terra e do Império Galáctico Terrestre. Desde que o teletransporte instantâneo da matéria no tempo e no espaço foi descoberto em 2314, a noção de trabalho praticamente desapareceu do planeta. Somente algumas centenas de agentes espaço-temporais e tecnocratas dos serviços de espaço-tempo têm uma atividade real. Os agentes patrulham a História para combater os piratas da viagem no tempo e exploram os planetas distantes para garantir novas reservas para a Terra. Os tecnocratas são administradores científicos, dos quais os mais poderosos, os tecnocratas do Primeiro Círculo, constituem a única forma de autoridade planetária e interplanetária. Quanto ao resto da humanidade, estes se entregam aos prazeres do sonho, sob o controle do Serviço dos Sonhos, que administra os programas. A civilização parece ter atingido um estado de equilíbrio”.

O que é chamado de equilíbrio parece um tanto sombrio no século 21: um mundo controlado por tecnocratas em que a humanidade é aprisionada num mundo de sonhos. E é justamente para impedir uma ameaça à essa civilização em estado de equilíbrio que Valerian, o melhor dos agentes espaço-temporais, é convocado nos primeiros três primeiros álbuns da série, Os Maus Sonhos (1967), A Cidade das Águas Movediças e Terras em Chamas (os dois de 1970).

Mas é somente com O Império dos Mil Planetas (1971) (base da adaptação cinematográfica) que a obra mostra mais claramente as características que a tornarão um sucesso na França: Valerian e Laureline chegam a um planeta misterioso (mostrados magistralmente pelos desenhos de Mézières e cores de Évelyne Tranlé) onde reinam a guerra, relações de força e opressão social, e o casal de heróis ajudam no estabelecimento da paz e justiça.

Graduado em Ciências Políticas, Christin vai tornando esses temas mais complexos no decorrer das aventuras de Valerian e Laureline, também abordando conflitos ideológicos, uma superioridade da natureza em relação à complexidade tecnológica, diversidade, feminismo, uma certa desconfiança frente ao poder e os riscos da supressão da individualidade etc. Tudo isso, é claro, num ritmo frenético de ação constante.

Afinal se, como muitos leitores já apontaram, nas páginas de Valerian encontra-se um humanismo (atribuição de sentido ao gênero humano), este se deve a esta mistura inusitada das experiências dos autores que nasceram França e encontram-se nos Estados Unidos (Christin foi professor de Literatura Francesa na Utah University e Mézières ficou um longo período no país com diversos empregos, inclusive com a ajuda de Christin), países que foram palco das maiores revoluções burguesas da História.

É possível notar os valores de Liberdade, Igualdade e Fraternidade (ideais da Revolução Francesa) bem como a ideia de que o poder de um governo só pode vir do consentimento dos governados (que consta na Declaração de Independência dos EUA) no clímax de O Império dos Mil Planetas. Mas a influência americana na história está sobretudo na concepção de fronteira.

Como ensinou o Velho Quadrinheiro, fronteira “para um americano é tudo aquilo que está além do conhecido e domesticado, uma percepção imaginária nascida nas primeiras décadas da colonização da América do Norte”. Lembremos que inicialmente os autores de Valèrian queriam criar uma história de Western (ambientação onde a ideia de fronteira ganha força na história dos Estados Unidos), mas desistiram, pois julgaram que o gênero já estava bem representado nos quadrinhos com personagens como Lucky Luke.

Valerian e Laureline são heróis que vêm de um grande centro civilizador e civilizatório, o Império Galáctico Terrestre. Em certa medida, quando chegam aos planetas misteriosos, além do conhecido e do domesticado, a fronteira entre o que é civilizado ou não é o impulso para, de alguma forma, trazer a civilização a esses lugares. Não sob a forma da dominação pelo Império Galáctico Terrestre, claro, mas nas formas dos valores acima elencados, tão burgueses quanto universais.

Todos esses elementos tornam Valerian uma obra que deve ser apreciada em sua mídia de origem pois dificilmente toda essa riqueza será adaptada para as telas. Porém, independentemente da qualidade da adaptação cinematográfica, esta já traz em si um saldo extremamente positivo, o de promover a popularização de um quadrinho tão rico em suas possibilidades de leitura.

Sobre Nerdbully

AKA Bruno Andreotti; Historiador e Mestre do Zen Nerdismo
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