Existe algo nas recentes narrativas heroicas causando incômodo. Existe algo faltando.
*****Aviso: spoilers sobre Guardiões da Galáxia vol. 2.*****
Um ponto importante na Jornada do Herói (conheça-a aqui) é a morte simbólica do pai. Para completar sua jornada, o herói deve, simbolicamente, matar o pai. Isso é um sinal de seu amadurecimento e de que está trilhando o próprio caminho.
A cena mais emblemática que representa essa passagem – pelo menos para a minha geração – é a cena em que Luke Skywalker entra na caverna em Dagobah e “mata” Darth Vader. Após cortar a cabeça de Vader, Luke vê a si mesmo sob a máscara. A cena representa tanto a morte do pai quanto o medo de Luke tornar-se Vader, ou seja, não seguir o próprio caminho.
Acontece que em muitas narrativas o herói não consegue mais desvencilhar-se do pai, e isso é mostrado como algo positivo.
Dois breves exemplos. Na série do Flash, Barry Allen conta com não apenas um mentor, mas três (ao menos nas duas primeiras temporadas, a terceira eu realmente não sei porque está chata demais) e em Man of Steel, o Superman fica tolhido entre Jor-El ou Jonathan Kent. Em ambos os casos não há saída para o herói, que deve escolher entre caminhos já traçados, como se fosse incapaz de tomar uma decisão que não conte com o apoio de uma figura paterna, um comportamento freudianamente infantil .
Mais recentemente em algumas narrativas, matar o próprio pai tornou-se atributo de vilões. Kylo-Ren assassina (literalmente) Han Solo, com isso mostrando que escolheu definitivamente o lado obscuro da Força. Na recente série do Punho de Ferro é Ward Meachum que mata seu pai, Harold. Ou seja, matar o pai tem sido visto como algo ruim, e escolher um caminho que não conta com sua aprovação é errado. Parece que o herói deve agora ficar nos seguros caminhos traçados pelo Pai e sair dele significa um erro. Mais que isso, escolher o próprio caminho é algo de vilanesco.
Mas em Guardiões da Galáxia vol. 2 essa dimensão tão importante da Jornada do Herói foi resgatada.
De acordo com Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos de mitologia, a busca pelo pai é um tema que se repete em diversas mitologias. Encontrar o pai é encontrar o próprio caráter, é encontrar seu próprio destino. Mas tão importante quanto encontrá-lo é mata-lo, isso é, superá-lo.
No primeiro Guardiões da Galáxia, a identidade do pai do Senhor das Estrelas permanece um mistério e é Youndu a figura paterna, relação problemática do qual Quill se ressente.
No segundo filme há uma brilhante inversão nos papéis. Ficamos sabendo que Youndu na verdade protegeu Peter ao não entregá-lo ao seu pai, pois Ego os devorava (assim como Cronos na mitologia clássica).
O pai do Senhor das Estrelas, com o nome freudianamente sugestivo, “Ego”, tinha um plano para sua prole. Um destino já traçado, assim como muitos pais fazem com seus filhos.
Ao negar submeter-se aos planos de seu pai literalmente matando-o (ou não, mortes são sempre relativas quando se tratam de super-heróis), o Senhor das Estrelas cumpre esse importante papel em sua Jornada como Herói. Mais que isso. Ele também se encontra com Youndu, com seu verdadeiro caráter, que se mostrou seu pai todo o momento, ainda que o líder dos Guardiões da Galáxia só tenha percebido isso tardiamente.
O importante é que Peter Quill não tornou-se nem um deus nem um saqueador, mas encontrou seu próprio caminho como um Guardião da Galáxia, longe da sombra de seus pais.
Se as narrativas heroicas recentes têm se mostrado relutantes em mostrar o herói escolhendo o próprio destino (talvez um reflexo da imaturidade geracional dos millennials), o Senhor das Estrelas está aí para nos lembrar o que um verdadeiro herói deve fazer: trilhar seu próprio caminho – e o de mais ninguém.
Sendo um fã dos trabalhos de Miyazaki (Chihiro, Ponyo, Princesa Mononoke) e passando a admirar a filosofia oriental de resgate e redenção, considerei o assassinato de Ego um caminho errado. Me veio a cabeça o exemplo do filme Kubo e as cordas mágicas(filme ocidental): o vilão da estória é avô do herói e invés de ser morto literalmente, tem sua mente apagada, ganha uma nova vida, uma oportunidade de fazer do jeito certo, desta vez orientado por boas pessoas. Um filho que mata seu pai, ou o inverso, me soa anti ético demais, anti humano.
Admito, tenho coração mole.
Ola, Sérgio. Interessante sua colocação. Talvez o post tenha sido um pouco freudiano e ocidental demais, mas vou deixar aqui trechos de um outro post que também comenta essa relação do Herói com o Pai que talvez contextualize melhor a questão (você pode ler o post aqui).
“Seguindo com Freud e o Complexo de Édipo, a mãe é o primeiro objeto de amor de todos os homens e o pai está lá como o grande obstáculo desse desejo. Quando introjetamos essa primeira regra, a de que não podemos ter nosso primeiro objeto de desejo, estamos também introjetando a primeira regra cultural: a proibição do incesto. Portanto, o pai simboliza também a primeira regra, a primeira sujeição do indivíduo à coletividade, à cultura. A primeira submissão.
Matar o pai – simbolicamente, é claro – é o momento em que superamos essas imposições sociais, momento de afirmação de quem somos como indivíduos. Mas claro que mesmo essa morte simbólica acarreta alguma culpa e essa culpa será um lugar de referência, a própria condição da cultura.
Então o ponto principal é: a procura pelo pai faz parte da jornada heróica e arquetípica. Ao encontrar seu pai, você também deve matá-lo para encontrar seu próprio caminho”.
Nessa perspectiva T’Challa supera seu pai em espirito ao dizer a ele, já quando encontra ele no mundo dos panteras, que ele estava errado ao matar o pai de Kilgrave, deixar a criança e não ter contado a ninguém. Durante o filme todo ele também reflete sobre alternativas para “abrir” as portas de wakanda para o mundo, assim, uma alternativa diferente dos outros panteras, seguir seu próprio caminho. Essas reflexões no filme são bem marcantes…