Relembre a tragédia grega de Greg Rucka e J. G. Jones sobre Justiça, Dever e Vingança.
Hiketeia começa com a jovem Danielle Wellys, que está sendo perseguida pelo Batman. Procurando a ajuda da Mulher Maravilha, ela realiza o ritual de hiketeia, palavra de origem grega que significa súplica.
Na história, a hiketeia é definida da seguinte forma:
Hiketeia é lei. Hiketeia é ritual. Jamais deve ser ignorada. Como todos os rituais, ela tem regras. Quebrar as regras é sacrilégio. Onde os deuses são vivos e poderosos… onde o ritual é aplicado conforme a tradição e a lei…recusar ou negar é impensável. E violar a promessa de hiketeia… aceitar e depois negar a proteção e auxílio a um suplicante resulta… na mais selvagem punição. Não é apenas hospitalidade. É mais do que abrir sua casa para alguém. Aceitar hiketeia é assumir completa responsabilidade pelo suplicante. Através da humilhação em um ritual, prostrando-se no chão e coisas do gênero… o suplicante troca o próprio valor e honra pelos de seu protetor. Ele retém um único poder… só ele pode findar a obrigação.
Sem saída, a Mulher Maravilha aceita a hiketeia da jovem e com isso temos o conflito que moverá a história: como será o embate entre O Cavaleiro das Trevas e a Princesa Amazona? No entanto o herói da tragédia não é nenhum dos dois, mas sim Danielle Wellys, se levarmos em conta que na tragédia o herói é a vítima arbitrária do destino.
Nascido na Grécia Antiga numa espécie de interlúdio entre o mythos e o logos, o pensamento trágico pode ser resumido como a tentativa consciente de luta contra o destino decretado pelos deuses, luta esta que está fadada ao fracasso. É o caso de Wellys, perseguida por uma entidade que representa a Justiça (Batman), tentando escapar a todo custo e tendo como último refúgio a ajuda de uma entidade que representa o Dever (Mulher Maravilha), resultando num embate em que só pode haver um vencedor, cuja solução é impossível: Justiça x Dever.
Até então não sabemos o motivo do Batman perseguir Wellys, apenas podemos postular que, se Batman a persegue, é porque cometeu algum crime. É somente próximo ao final da trama que ficamos sabendo as motivações da jovem.
Wellys assassinou por Vingança os quatro homens que aliciaram sua irmã, levando-a para o mundo da prostituição e viciando-a em drogas pesadas como forma de controla-la, o que culminou com sua morte. É somente a partir do momento que conhecemos o que a levou a cometer os assassinatos que podemos solidarizar com o herói trágico, sentir compaixão pela vítima do destino. É também assim que pode haver catarse na tragédia de acordo com Aristóteles, pois ela proporciona a compaixão pelo herói e o temor de que algo parecido venha a acontecer com o espectador.
No embate inevitável entre Batman e Mulher Maravilha, o Homem Morcego sabe que não pode vencê-la, então tenta utilizar-se de um último estratagema: ele prostra-se diante da Guerreira, realizando ele o ritual de hiketeia, que é recusado. E aqui há um ponto que merece ser melhor explorado.
Se o ritual pode ser recusado, por que Diana o aceitou? Rucka tenta uma explicação. A Mulher Maravilha diz que simplesmente não pensou ao aceitar o ritual e que, mesmo se soubesse o que aconteceria, não sabe se teria agido diferente, talvez por representar justamente o Dever frente a uma irmã num momento de necessidade.
O problema é que Batman, ao utilizar-se do ritual diz Eu o uso como seus ancestrais usaram. Como fizeram Licaão e Aquiles. Porém, assim como Aquiles recusa a hiketeia de Licaão na Iliáda, a de Batman também é recusada. Por que isso acontece se no início da história nos é dito que onde o ritual é aplicado conforme a tradição e a lei recusar ou negar é impensável ?
John Gould, em um artigo chamado Hiketeia aponta para o fato de que quando Aquiles recusa a hiketeia de Licaão e o mata, ele não está mais tocando o joelho de Aquiles, o que, ritualisticamente (ou seja, para a aplicação do ritual “conforme a tradição e a lei”), seria importante. Podemos notar que Diana afasta-se de Batman e este não mais toca seus joelhos no momento da recusa.
Diante daquela situação impossível Danielle Wellys decide tirar a própria vida e suas últimas palavras liberam a Mulher Maravilha da hiketeia, um desfecho digno de qualquer tragédia grega.
Ubaldo Puppi no artigo O trágico: experiência e conceito afirma que a tragédia é a arte da denúncia e a história se mostra trágica também no sentido de denunciar os abusos e violências sofridos por mulheres, retratado pelas motivações do herói trágico da história.
Ainda de acordo com Puppi e mostrando novamente o caráter trágico da história, o herói trágico é aquele que sofre até as últimas consequências a violência como denúncia e, após a ira dos deuses ser descarregada sobre o herói é que a normalidade pode retornar à comunidade, exatamente o que é proporcionado pela morte de Wellys e liberação da Mulher Maravilha de seu juramento, a conciliação entre Justiça e Dever.
Uma obra de arte pode ser tão superficial ou profunda quanto seu leitor. Hiketeia é uma história de super-heróis, é entretenimento e é um produto. Mas também é uma tragédia grega, suscita reflexões e é uma obra de arte. Por isso a história é digna de não ser esquecida.
“Uma obra de arte pode ser tão superficial ou profunda quanto seu leitor.”
É por isso que eu pago a minha internet! rsrs…
Me senti melhor agora. Eu sempre gostei dessa obra, mas percebia que muitos não davam a devida importância. Na verdade, nem eu mesmo sabia muito bem o que ela tinha de tão legal. Lendo sua análise eu pude perceber. Realmente, é uma grande obra que definitivamente não deve ser esquecida!
Li a muito tempo atrás, e recentemente consegui adquirir um exemplar usado em perfeito estado. É uma das mais importantes peças da minha coleção.
Parabéns pelo texto Nerdbully! Excelente, como já é de costume..
Ola, João. Sim, Hiketeia tem vários níveis de leitura e mesmo sem todas as referências a história desperta reflexões num leitor atento. Obrigado pelos elogios e abraço!
Reli semana passada e continuo considerando uma das melhores da Mulher Maravilha. Se fosse levada as telas como animação…