O Superman de Zack Snyder é o Atlas revoltado?

51m5RIqC3JLQual a relação entre o Homem de Aço e A Revolta de Atlas de Ayn Rand?

A nova série de Mark Millar para a Image – Jupiter Legacy, desenhada por Frank Quitely, trata do filhos dos super heróis, de seus conflitos com os pais e de como tudo isso afeta o mundo todo por causa dos poderes desses personagens. A premissa é interessante e a série tem feito sucesso, o que motivou um prequel (série derivada que mostra o que aconteceu antes da história principal).

Jupiter Circle conta a história da juventude dos pais dos protagonistas de Jupiter Legacy, em meados do século XX. Na edição 3, Millar coloca os personagens num encontro social com pessoas reais dos Estados Unidos daquela época – como membros da família Rockefeller e a escritora e pensadora Ayn Rand. E é no diálogo de Rand com o herói que faz as vezes de Superman desse universo que eu começo a construir meu argumento nesse texto.

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Ayn Rand é a autora de The Fountainhead (Vontade Indômita, de 1943) e de Altas Shrugged (A Revolta de Atlas, de 1957), entre outros, livros onde ela ilustra suas ideias filosóficas que vieram a ser conhecidas como Objetivismo. Basicamente ela defende que o individualismo sobre o coletivismo, fazendo uma crítica ao socialismo soviético e ao Estado como supressores do individualismo e um elogio do capitalismo.

Ela diz para o Super que ele é o herói clássico sobre o qual ela sempre escreve, que faz o que quer fazer, sem ceder às amarras sociais. Ele responde que se considera mais como um servidor público, e ela rebate dizendo que isso é bobagem já que se ele usa os poderes que tem para impor sua superioridade e punir os parasitas.

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Para Rand o coletivismo é premissa de povos/pessoas que são incapazes de conceber a ideia de direitos individuais. No coletivismo a tribo é o poder supremo e a vida de seus membros pode ser sacrificada em nome dessa ascendência. Contra as evidências apontadas pela antropologia de que os seres humanos tendem a cooperar e cuidar uns dos outras, Rand argumenta que mesmo que tenhamos começado como animais sociais, hoje somos capazes de decidir nos livrar do que ela chamava de “doença” do altruísmo.

A psicologia, a ciência cognitiva e a neurociência já reuniram evidências mais do que suficientes para desqualificar a hipótese de Rand de que é possível desprogramar nossa herança cultural, já que ela está arraigada em nossos processos físico-químicos de funcionamento do cérebro, determinados pelos nossos genes. Ainda assim existe uma certa sedução no pensamento de Rand, que está em sintonia com o a lógica do consumo como recompensa e da meritocracia míope, que olha só para o indivíduo e não para os contextos coletivos que os formaram.

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Mark Millar coloca ecos de Ayn Rand em seu Lex Luthor de Entre a Foice e o Martelo que impede a invasão comunista agindo em nome de seu interesse próprio. Mas nesse caso o personagem não é nem vilão e nem herói. Fica mais difícil de aceitar o objetivismo de Rand quando ele determina as escolhas de um personagem como o Superman.

E então chegamos na visão de Zack Snyder para O Homem de Aço.

Para além da discussão sobre se o Superman mata, a cena mais emblemática de O Homem de Aço é a morte de Jonathan Kent. A música é épica e o sofrimento interpretado por Henry Cavill é tocante, mas é inconcebível que um herói poderoso e capaz, mesmo que ainda sem conhecer toda a extensão de seus poderes, escolheria sacrificar seu próprio pai para preservar sua privacidade. Mas é isso que o objetivismo de Rand defende.

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Podemos encontrar ecos desse pensamento na visão que Snyder tem do personagem Rorschach de Watchmen. Nas mãos de Alan Moore, o personagem é uma crítica à insanidade do vigilantismo, mas nas mãos de Snyder é a glamourização estética da violência. Não é coincidência que o próximo projeto de Snyder é uma adaptação para o cinema de The Foutainhead, da autora.

Os primeiros escritos de Ayn Rand e o Superman de Siegel e Shuster são contemporâneos e refletem o contexto do New Deal, que após a quebra da bolsa de valores em 1929, aumentou a interferência do Estado na economia para reerguer o país. A Segunda Guerra Mundial e as consequências sociais e econômicas para os Estados Unidos explicam tanto o papel de defensor da classe trabalhadora contra as injustiças que cabia ao Superman, quanto a crítica de Rand à intervenção do Estado e o consequente crescimento da burocracia.

Interessante como os ecos dessas ideias ainda nos acompanham, sejam nos quadrinhos, no cinema, na economia, nas propostas políticas. Ainda estamos presos a conceitos de contextos que já não são mais nossos, buscando valores heróicos e explicações lógicas para reiterar as crenças que temos e que não queremos questionar ou abandonar.

Fontes:

http://www.pbs.org/newshour/making-sense/column-this-is-what-happens-when-you-take-ayn-rand-seriously/

http://www.bleedingcool.com/2016/03/18/superman-shrugged-man-of-steel-re-examined-by-the-internet/

http://www.bleedingcool.com/2016/01/28/the-joys-of-jupiters-circle-the-savage-dragon-mark-millar-and-ayn-rand/

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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7 respostas para O Superman de Zack Snyder é o Atlas revoltado?

  1. Olá. Gostaria de parabenizá-lo pela iniciativa e pelo texto instigante. Gosto de textos que misturam quadrinhos e política ou filosofia. Em meu blog há vários do gênero. Por isso gostaria de deixar minha opinião. Não creio que a cena do sacrifício de Jonathan Kent justifique uma teórica aproximação entre o Superman de Snyder e Ayn Rand. E digo isso porque o real motivo da conduta de Clark Kent, naquela circunstância, foi a obediência ao dever moral de respeito por uma ordem emitida pelo próprio Jonathan (e não o desejo egoísta de proteger a própria intimidade, como você supõe). Acho que a cena deixa isso muito claro. Logo, a julgar por essa cena, o Superman de Snyder é um kantiano, e não randiano. Além disso, eu gostaria de comentar mais um momento de seu texto. A Ayn Rand escrita pelo Millar tem razão em um aspecto: por um lado, super-heróis (incluindo o maior de todos, Superman) possuem um viés profundamente individualista, no sentido de que são imbuídos de um espírito compartilhado pelas tradicionais figuras dos cowboys: isto é, indivíduos totalmente independentes de qualquer ordem estatal e de qualquer auxílio político, e que fazem “as coisas acontecerem” a partir de sua própria força, inciativa e coragem. São seres que se sustentam apenas a partir de suas exclusivas propriedades privadas, sejam elas incidentes sobre bens físicos ou morais. Porém, isso ainda não faz deles figuras “randianas”, e por uma particularidade fundamental. Para Ayn Rand, a moralidade está fundamentada no egoísmo (como você próprio expôs). Em contraste, os super-heróis são fortemente altruístas (ao menos os mais clássicos). Mesmo o herói que deveria ser randiano por excelência, o interessantíssimo Mr. A de Steve Ditko (e o seu xerox, Rorschach) é altruísta. Logo, ele seria considerado uma abominação pela própria Ayn Rand. E isso me leva a questionar se Steve Ditko realmente entendeu, afinal de contas, os conceitos de Ayn Rand.

    • Oi Rogério. Valeu pelo seu comentário aprofundado. Sempre é bom ter interlocutores dispostos!
      Sobre o seu comentário em relação ao contraste entre o individualismo e o altruísmo do herói, acho que isso explica o fascínio que o mundo tem pela narrativa heróica norte americana. O fora da lei que por força das circunstâncias coloca a estrela de xerife no peito fala direto com a nossa própria experiência pessoal errática, contraditória, incoerente, poética e cheia de significado.
      E sobre o aspecto kantiano na relação entre Clark e seu pai, gostaria de apontar que eu acho que toda relação entre pai e filho tem essa sombra. A justificativa de Jonathan para se sacrificar, preservando a individualidade/liberdade do filho, é algo que Clark internalizou, portanto ele não salva o pai tanto para se preservar quanto para cumprir o desejo/ordem de seu pai. Uma relação kantiana/randiana. Muitos anos de terapia pela frente…

      • Paulo Leviatto disse:

        Com o detalhe de que, ao demonstrar a atitude de ir salvar o pai, ele não pretendia se preservar, nem nunca pretendeu, porque ele queria ir no lugar do Jonathan, inicialmente. Apenas cumpriu o desejo do pai. Todas as atitudes dele demonstram que ele não pretendia se preservar.

        Ao mesmo tempo em que incentivava o altruísmo de Clark, Jonathan também tinha que contrabalançar com as restrições, porque se o mundo o descobrisse naquele momento ainda imaturo, poderia significar uma grande catástrofe (maior do que a que Zod causou invadindo a Terra). Esse é o dilema da história e que compõe o desenvolvimento dos personagens.

      • Oi Paulo. Numa interpretação psicológica a vontade do pai de preservar o filho foi internalizada pelo Superman, a ponto dele atender a vontade de Jonathan. Salvar o pai seria uma ruptura com a figura paterna e uma afirmação do eu heroico do personagem (o que é mais condizente com o que eu entendo por Superman). Entendo a imaturidade dele naquele momento da narrativa e a força da figura paterna, mas para a minha interpretação isso aproxima o personagem da filosofia de Rand pq fragiliza o papel dele em relação a coletividade, reforçando aspectos individualistas. Como vc pode ver a discussão aqui é infinita, hahaha!

      • Marcelo do Nascimento disse:

        Picareta Psíquico – praticamente isso, o que torna a ação do Super Randiano é a escolha individualista dele, pelo coletivo ele simplesmente iria ter de salvar o pai querendo ou não, com ordem ou não. É como se existisse uma lei e ela determinasse a situação e vc não pudesse infringir essa lei… porque caso contrario seu mundo acabaria, acabaria de fato, não apenas um lamento…

        Mas a medida do individualismo, ele tem a opção de escolha individual, como ser único que pode tomar essa decisão pessoal, e ele escolhe baseado em toda uma história que justifica essa escolha individual, e não para agradar a um coletivo geral…. ou mesmo para agradar seu pai,

        Mas talvez ainda isso até construa a identidade do superman, lhe dando um motivo pelo qual ele não deseja mais fazer esse tipo de escolha, ou seja, ele passa a não querer mais errar, não quer mais deixar pessoas morrem, ou seja, ele quer salvar pessoas para se sentir bem, e fazendo isso, se sentindo bem ele ao mesmo tempo esta ajudando todos os indivíduos, de forma individual, de forma natural e opcional.

  2. Zee Deckard disse:

    Acho que o tenho algo a contribuir aqui. Rand foi uma expatriada soviética com durs repreendas aos socialismo, basicamente sua filosofia é uma ode ao capitalismo, mas um capitalismo filtrado pelas percepções dela onde um indivíduo, expressando sua individualidade, sua criatividade, transforma o mundo. É neste ponto, lá no Jupiter´s Circle, que forma o contexto da admiração dela pelo grupo de – indivíduos – que fazem o que querem, regidos por sua moral interna e não pelos anseios do coletivo. Por exemplo a cena da morte do Kent, socialmente condenável pois Superman tem o poder pra salvar o pai, entretanto fere a vontade do indivíduo, o pai.

    A condenação do social é a condenação do socialismo. Onde há a prisão do indivíduo em relação ao grupo. Se o grupo decidiu, não é você, indivíduo que vai se posicionar contra. Ou inda mais de acordo com as palavras dela, um indivíduo criativo levar uma parcela de pessoas nas costas. Que é uma alusão a um inventor não ser dono de sua invenção, ou como diz o pós modernismo: “a obra não pertence ao autor, mas sim ao público”. Para ela tudo isso é uma abominação.

    Ms o que eu acho inda mais interessante foi a resposta do utopiano, em Jupiter´s Circle, o pulo do gato do excelente texto do Millar: “não é só isso”. Rand tem uma visão ainda dual. Ou é sociedade ou é indivíduo. E eles, como pessoas, super heróis, agentes do governo, futuros pais… eles tem camadas e camadas e mais camadas morais, paradoxais, corruptas e tudo junto, misturado, embolado. Isso é um contra ponto muito legal na história.

    Abração!

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