
O termo ciborgue (em inglês, cyborg, uma aglutinação de cybernetic organism) foi usado pela primeira vez em 1960. Em princípio, designava sistemas auto-reguláveis hipotéticos — parte humanos, parte mecânicos —, que poderiam ser usados na exploração espacial ou em qualquer ambiente ou tarefa que exigissem capacidades humanas ampliadas pela tecnologia. Os grandes avanços principalmente no campo da protética tornaram esse conceito uma realidade, ainda que, até onde sabemos, os ciborgues da vida real usem a tecnologia para reduzir as desvantagens em relação aos humanos totalmente orgânicos.

A palavra é recente, a idéia não. Desde que aprendeu a lascar pedras, o homem tem usado a tecnologia para ampliar suas capacidades. É claro que estamos pensando a palavra tecnologia em seu sentido mais amplo, não o senso comum contemporâneo, que trata a tecnologia exclusivamente como o desenvolvimento de equipamentos microeletrônicos e afins. Cada sociedade produziu sua tecnologia, limitada pelas possibilidades intelectuais e técnicas de seu tempo. Conforme aumentou seu grau de sofisticação, mais restrita se tornou. Hoje, somos capazes de fazer uso de uma enorme variedade de produtos tecnológicos no dia-a-dia, mas o conhecimento teórico e prático necessários à fabricação são incompreensíveis para a esmagadora maioria da humanidade. E mesmo você,
geek que se orgulha de ter montado seu próprio computador, teria dificuldade de consertar seu carro ou o elevador. A tecnologia se tornou algo tão diversificado que é pouco provável que alguém domine todos os seus campos.

Voltando aos ciborgues, não é de hoje que o homem tenta aprimorar o corpo usando tecnologia. Armas e armaduras, por funcionarem como extensões do corpo, são os exemplos mais fáceis de se entender. Também temos toda a tecnologia esportiva, que vai desde os suplementos químicos (legais ou não) até os equipamentos que melhoram a absorção de impacto, a ventilação do corpo, a acuidade visual, etc. Ou seja, a realidade do que é um ciborgue ultrapassa em muito o imaginário comum: se você usa óculos, aparelho, remédios de uso contínuo, etc, você já é, em certa medida, um ciborgue. Você só não tem tudo isso na forma de implantes ou próteses em seu corpo, mas isso é uma simples questão de limitação tecnológica momentânea.

O avanço da tecnologia aplicada ao corpo nos traz uma série de questões éticas, principalmente quanto ao prolongamento da vida natural ou sobre o
loco de nossa humanidade. Afinal, seremos ainda humanos quando nossas partes naturais forem substituídas por partes artificiais? Nossa humanidade será afetada pelos implantes mecatrônicos? E se os implantes forem orgânicos, cultivados a partir de células-tronco?
A ficção científica parece ter uma resposta muito simples para todas essas questões: a humanidade independe do corpo. Filmes, livros e gibis desfilam um número quase incontável de personagens que superaram esse dilema. O número de exemplos negativos, personagens que enlouquecem quando perdem parte significativa daquilo que definem como parte de sua humanidade, também é tão grande quanto e poderia render outro artigo. Por enquanto, me interessam os que preservam a integridade da alma, ainda que tenham perdido a do corpo. Aliás, me interessa um: Robocop.
Presumo que você já viu o filme original e, talvez, o remake que agora está nos cinemas. Mesmo assim, vou me esforçar para evitar spoilers. Por segurança, talvez você queira deixar para ler o resto mais tarde.

Robocop é um objeto. Parte de seu corpo original foi preservada, principalmente o cérebro. A maioria de nós concordaria que é a única coisa essencial para que o policial Alex Murphy continue existindo. Mas o que existe é Robocop, uma máquina que preserva uma aparência de humanidade por uma série de conveniências. Em algum momento, Murphy volta à cena. Contrariando sua programação, ele resgata gradualmente sua humanidade e passa a fazer seu trabalho como policial, independentemente dos interesses políticos e econômicos que nortearam sua construção, com toda a eficiência que os recursos tecnológicos de seu novo corpo colocam à disposição.
Robocop pode ser visto como mais um filme para aquele moleque (vale a idade cronológica e/ou mental) que gosta de “filme para homem”, com tiros, explosões, porradas e um monte de efeitos especiais. Ou pode ser visto como um elogio à tecnocracia e os tiros, explosões, porradas e efeitos especiais são apenas para manter a atenção do moleque, enquanto ele absorve o conteúdo político sem perceber.

A tecnocracia defendida em
Robocop não é a da impessoalidade fascista, mas a da individualidade liberal. Ela tem profundo impacto na vida do cidadão, mas é o cidadão quem opta pelo uso que se fará de seus recursos. Mais importante, o senso de dever e justiça não são fruto da programação de
Robocop, mas da vontade de
Alex Murphy. É o homem, não a máquina, quem pode proteger a sociedade das armadilhas de um sistema corrupto e ganancioso.
A mensagem de Robocop vai na contra-mão do que parece ser a tendência da sociedade-em-rede contemporânea: a tecnologia favorece a comunicação social, mas as pessoas não parecem mais integradas à sociedade. Muito pelo contrário, elas parecem cada vez mais reclusas em pequenas unidades auto-suficientes de existência pseudo-socializada.

Devemos, então, abolir a tecnologia da nossa vida? É claro que não, até porque a culpa desse processo de desumanização pela dessocialização não é da tecnologia. Grande parte do desenvolvimento tecnológico ao longo da história, principalmente os avanços que ampliaram as capacidades humanas, foi pensada para impor o poder de um homem sobre outros. Já somos, em nós mesmos, incapazes de estabelecer uma relação de convivência cooperativa. A tecnologia apenas torna essa tendência mais visível. A meu ver, a bioética nem precisa gastar tanto tempo discutindo os limites da aplicação de tecnologia ao corpo humano para a preservação da humanidade. Nós estamos abrindo mão dela por conta própria. E sem os implantes.
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Sobre Quotista
Filipe Makoto Yamakami é historiador, professor, músico amador, twitólatra, monicólatra, etc.
E realmente precisa de um emprego que lhe permita pagar as contas.
@makotoyamakami
tecnocracia capitalista na cabeça