Fagin, os judeus e os preconceitos

Mais uma vez os Quadrinheiros apresentam O Estrangeiro – o Red Shirt mais assíduo do que alguns Quadrinheiros

Fagin, o judeu é mais do que uma simples narrativa, é uma pretensa resposta a certo estereótipo judaico presente na literatura e, consequentemente, no imaginário dos séculos XIX e XX. A história foi escrita e desenhada pelo quadrinista estadunidense Will Eisner (* 1917 – + 2005). Para quem não conhece, Fagin é o vilão do romance (inicialmente de folhetim) Oliver Twist do escritor inglês Charles Dickens (* 1812 – + 1870). O personagem em questão ganhava a vida nas ruas através de trapaças, furtos e, pior, do recrutamento de crianças que ele introduzia ao crime.                   

Capa oliver-twist  A grande polêmica dos estereótipos surge do fato de que, na obra de Dickens, Fagin é judeu e, por inúmeras vezes, diante da vileza do personagem, sua origem é realçada. Já em sua época, Dickens recebeu críticas da comunidade judaica por relacionar a criminalidade aos judeus. Foi acusado de antissemitismo. Dickens – que nada tem de antissemita, segundo especialistas – disse apenas ter retratado aquilo que observava no submundo da Londres do século XIX, ou seja, boa parte dos criminosos e agenciadores de menores corruptores era judia. Mesmo assim, Dickens fez a mea culpa: em edições posteriores da obra, eliminou parte das ocorrências da palavra judeu a fim de amenizar o estigma que poderia ter provocado.

O quadrinho, com o traço peculiar de Eisner, é a narrativa avessa dos acontecimentos descritos em Oliver Twist. Fagin será enforcado no dia seguinte à cena a qual somos apresentados e recebe a visita de Charles Dickens na prisão. A narrativa transcorre numa mistura entre séries de quadrinhos e parágrafos que se encarregam de explicar conceitos e realizar saltos temporais e narrativos.

Fagin O intuito de Eisner é contar a trajetória dos judeus ashkenazis Oriundos da Polônia, da Alemanha e de outros países da Europa Central, chegaram em condições miseráveis à Inglaterra e não tiveram oportunidades de se estabelecerem naquela sociedade. Estes distinguem-se dos judeus sefarditas (portugueses e espanhóis), dentre os quais se destacaria Benjamin Disraeli, que seria por duas vezes Primeiro-Ministro do Reino Unido (1868; 1874-1880). Fagin é ashkenazi e se tornou órfão muito cedo. Tentou ganhar a vida honestamente, mas fora trapaceado em diversas ocasiões e, por ser judeu, pessoa alguma lhe dera crédito. Foi preso e enviado para uma colônia inglesa de degredados no Caribe. Voltou a Londres, mas encontrou apenas uma forma para ganhar a vida: o crime. Já velho, Fagin agenciava meninos de rua, que furtavam a burguesia para que o judeu pudesse revender tais pertences e aplicar outros golpes na rua.

 O argumento de Eisner é simples. Essa vida escusa foi a única alternativa para o velho.  As aulas de malandragem foram a forma mais concreta encontrada por Fagin, para abrigar, cuidar e dar carinho aos meninos de rua – o que inclui Oliver Twist. Portanto, num país sem oportunidades e carregado de preconceitos e estereotipagens, a criminalidade foi a saída para Fagin e os ashkenazis do submundo.

 Ao término da trajetória de Fagin até a prisão, somos levados de volta ao diálogo ente ele e Dickens. Obviamente, o velho judeu é a voz através da qual Eisner defende sua tese e revela o objetivo de sua obra: Dickens retratou erroneamente os judeus na figura de um Fagin que não teve seu passado levado em consideração. Segundo Eisner, os membros “de uma raça pura, mas dispersa” são apenas sinônimos da criminalidade londrina na obra do britânico, que deixou de levar em conta as condições degradantes pelas quais eles teriam passado. Isso é um crime imperdoável para Eisner, como podemos observar na fala de Fagin contra Dickens: “Os artistas e os escritores sempre nos disseram em quem confiar e de quem ter medo! Você e os da sua laia, portanto, são responsáveis pela perpetuação do preconceito… neste caso, contra os judeus!”

Fagin vs Dickens

 A repreensão de Fagin foi ouvida. É preciso mudar. Para Eisner, a função dos artistas e escritores é romper os preconceitos, redimir os estigmas sofridos por povos inteiros, sobretudo daqueles que não podem fazê-lo. Dickens, em Oliver Twist, teria apenas reforçado esses estigmas. Para a felicidade de Eisner, Fagin, sefarditas e ashkenazis, a história andou e, devido ao grande progresso sionista, foram possíveis inúmeras obras de literatura, cinema, música e outras que militam hoje pelo fim dos preconceitos e estereótipos judaicos.

Mas ao que tudo indica, falta-lhes solidariedade.

Há inúmeros filmes que mostram e atacam o holocausto sofrido pelos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Estavam com eles nos mesmos campos de concentração e sob as mesmas leis nazistas os ciganos – membros de um povo cuja história econômica e militância anti-preconceito ainda não conheceram êxito –, que nunca foram sequer citados em tais obras. Além disso, os estigmatizados de outrora, ao se constituírem enquanto Estado reconhecido, reproduzem o preconceito e retaliam a quem lhes interessa. Exemplo máximo é a suspensão das doações de Israel e EUA – país hoje governado por um presidente também vindo de um grupo social outrora oprimido – à UNESCO em 2011, quando esta reconheceu a Palestina como um membro associado.

Então, Sr. Eisner?! A comunidade intelectual e financeiramente bem-sucedida judia é responsável hoje por dizer em quem devemos confiar e de quem devemos ter medo! Palestinos e ciganos não merecem qualquer tipo de justiça literária ou cultural? Você e os seus não têm qualquer tipo de responsabilidade pela perpetuação dos preconceitos?

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