Por que quadrinhos?

O filósofo do design e da comunicação Vilém Flusser diz que existem , a grosso modo, duas formas de pensamento (duas formas de comunicação) – em linha (texto), e em superfície (imagem). Segundo ele, no mundo de hoje predomina a imagem (cinema, tv, internet), mas ainda estamos ligados a lógica de transmissão de conceitos através do texto. Quando se lê um texto, o tempo que se leva para absorver a informação é o tempo da leitura. Absorvemos o conteúdo de forma consciente porque o código (as letras, palavras e frases) foram aprendidos por nós na infância de forma consciente. Quando se lê uma imagem absorvemos o conteúdo num tempo muito mais rápido e de forma inconsciente.

O tempo histórico, portanto é uma consequência da escrita como norma para a transmissão do conhecimento. A arte é o extremo oposto, e por isso é atemporal. Narrativas modernas em mídias como o cinema e a tv são o pensamento imagético guiado pelo tempo histórico. Mashups, trailers feito por fans, zines e quadrinhos são a desconstrução e reconstrução da narrativa (do tempo), mas tendo a imagem como essência.

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Flusser nos diz que temos duas possibilidades. Ou o pensamento imagético (que hoje predomina), não consegue incorporar o pensamento conceitual (texto), e isso levará a uma despolitização generalizada, a uma desativação e alienação da espécie humana, à vitória da sociedade de consumo e ao totalitarismo da mídia de massa, fazendo a  cultura da elite desaparecer para sempre (o fim da história em qualquer sentido significativo que esse termo possa ter). Ou o pensamento imagético se incorpora ao conceitual, e isso levará a novos tipos de comunicação, a ciência não será mais meramente discursiva e conceitual, mas recorrerá a modelos imagéticos, a arte não trabalhará mais com coisas materiais, ela proporá modelos. Os políticos não lutarão mais por valores pré-estabelecidos, eles irão elaborar hierarquias manipuláveis de modelos de comportamento. E isso significa em resumo, que um novo senso de realidade se pronunciará dentro do clima existencial de uma nova religiosidade.

will eisner

Quadrinhos são essa segunda possibilidade. Uma série de imagens estáticas que lemos de imediato e absorvemos consciente e inconscientemente seus vários níveis de conteúdo. Essas imagens são acompanhadas por um texto (uma história), que pode narrar a ação da imagem, mas também pode aprofundá-la, contradize-la ou negá-la, construindo uma complexidade de significados, casando texto e superfície.

Incorporando o imagético ao textual, desde iluminuras a ilustrações, de charges a tiras, que prenunciam e alimentam tudo que é produzido hoje para o cinema e a TV, os quadrinhos fazem o equilíbrio entre a lucidez e a loucura, a razão e os sentidos, que permitem que o leitor siga a história em linha reta ou quebre a linearidade e seja um agente ativo da desconstrução da linguagem, criando pontes entre o pensamento consciente e inconsciente.

Quadrinhos são a porta de entrada das múltiplas possibilidades do século XXI, da era da informação. Nas palavras de Elijah Snow (personagem de Warren Ellis na série Planetary) – É um mundo estranho. Vamos mantê-lo desse jeito.

little nemo

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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10 respostas para Por que quadrinhos?

  1. Mauricio Muniz disse:

    Mas essa frase (“Mundo Estranho”) é do Elijah Snow em PLANETARY, né? Não do Spider.

  2. Opa bem legal o texto e queria saber em que livro de Flusser vc pega essas ideias? fiquei curioso pra saber mais dele

  3. mariote3d disse:

    Adorei esse post. É uma discussão muito relevante e interessante.

    Não concordo que a humanidade esteja caminhando para uma fase de “estagnação intelectual” mais do que ele sempre foi.
    Também é fato comprovado cientificamente que: o ato da leitura SEM o “auxílio” de qualquer imagem exige muito mais da capacidade cognitiva do leitor para assimilar a ideia e a intenção do autor com seu texto (é a famosa “interpretação de texto”).
    Por ser mais trabalhoso, é o meio de linguagem mais indicado e de maior efetividade tanto para a exposição das idéias do autor (no caso, “escritor”), como para o crescimento intelectual do receptor (“leitor”), que necessita trabalhar para o cérebro entender sobre o que se trata a mensagem.

    Em outras palavras, a leitura te deixa mais “inteligente”, agilizando sua capacidade de interpretação para o mundo à sua volta.

    Mas se adotarmos a teoria de Vilém Flusser como “premonição” (as pessoas realmente ficando mais “burras”), a questão dos quadrinhos como nossa última “salvação” de evitarmos uma sociedade alienada é bastante interessante, e de certo modo válida.

    Porém, ela só pode ser aplicada aos BONS quadrinhos. Aqueles que buscam contar um história (ou demonstrar um ponto de vista) pensando na dinâmica “imagem e texto” em cada painel.

    Ambas devem casar perfeitamente para alcançar o mesmo objetivo: contar uma história ou demonstrar uma ideia, mas cada uma usando o que há de mais subjetivo e expressivo em suas “linguagens”, em suas “formas de comunicação”. Isso que faz da Arte Sequencial uma “arte”, pois o ser humano precisa da dificuldade para crescer.

    Entretanto, fazer as duas coisas ao mesmo tempo é uma tarefa MUITO difícil. Por essa razão é tão escasso um material de qualidade que reúna toda a abrangência de uma imagem e de um texto, utilizados CONJUNTAMENTE como meio de comunicar uma ideia.

    Como resultado disso, o que mais vemos é a separação dessas duas coisas: obras que preocupam-se apenas com o texto, utilizando a imagem exclusivamente como ilustração, ou (o que é pior ao meu ver), se focam unicamente na imagem em si, que é mais imersiva e, portanto, mais provável de haver uma maior empatia com o receptor (ignorando o texto).

    Meu ponto é que, para os quadrinhos tomarem lugar de um livro como melhor meio de linguagem, ainda temos que evoluir muito nossa percepção de mundo.

  4. No mundo de ícones que hoje nos cerca (interfaces gráficas cada vez mais universais), o texto cru está mais para armazenamento de dados do que para interação. A interface icônica tem por objetivo facilitar a interação entre nós e os dados (diminuindo o grau de dificuldade, ampliando o acesso), mas colateralmente somos menos estimulados ao esforço da abstração. Em oposição a isso a literatura é uma desenvolvedora de cérebros, mas não devemos ler essa oposição como um antagonismo. Hoje uma forte tendência de convergência de linguagens amplia os limites da literatura e da interface gráfica (filmes baseados em livros, games em filmes, livros em games, etc). O dado novo de tudo isso é a possibilidade de uma leitura complexa a partir de um ícone (que foi construido de forma complexa) – ou seja: ARTE.
    Existem graus nisso tudo. O ícone do facebook no smartphone é um grau (baixo) de arte, o desenho animado dos Simpsons é outro grau, um conto do Alan Moore ilustrado pelo J. H. Williams é ainda outro. Todos eles acrescentam camadas de informação ao texto que os gerou, seja a interface facilitadora que esconde o texto, seja a potencialização do alívio cômico, ou a extrapolação de significados ocultos, que se contradizem e se enaltecem simultaneamente.
    Bons ou ruins os quadrinhos estão nessa categoria de ARTE, num grau mais alto .
    Por isso os quadrinhos elevam a percepção do mundo tanto quanto a literatura só que de outra forma, mais convergente.

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