As muitas camadas da Última Caçada de Kraven – o antissemitismo

No terceiro episódio de Quadrinheiros Dissecam falamos sobre a Última Caçada de Kraven. Na edição final do episódio não entrou a discussão sobre as citações ao antissemitismo que estão por toda a história. Tais citações não são parte da trama, mas aparecem claramente na história e apontam para a forte ligação de Peter Parker com a cultura judaica.

Para efeito de cronologia e do passado estabelecido para o personagem, Peter Parker descende de família irlandesa e é católico, portanto o personagem não é judeu. Mas não é esse o ponto. Stan Lee é judeu e carregou o personagem de aspectos autobiográficos, como o forte sentimento de culpa e submissão em relação à figura materna (assistam a qualquer filme do Wood Allen para entender melhor esse traço cultural). J. M DeMatteis, o autor de Última Caçada de Kraven, é filho de pai judeu e mãe católica, portanto foi influenciado pela cultura judaica, além de compartilhar com Peter Parker o mesmo caldo cultural judaico/católico.

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Na história de DeMatteis, Kraven diz que sua família foi expulsa de Rússia “pelos trotskis e lenins”, o que significa que sua família era ligada à nobreza russa (o czar Nicolau II foi preso e executado pelos bolcheviques na Revolução Russa de 1917). Isso nos leva a cogitar a hipótese de que, por pertencerem à nobreza russa, os Kravinoff eram antissemitas, um traço característico da nobreza russa do período czarista e também uma política de Estado. O czar Nicolau II usou o livro/farsa Os Protocolos dos Sábios de Sião para justificar o massacre e a expulsão de judeus da Rússia antes da Revolução. Esse acirramento do sentimento antissemita se espalhou pela Europa culminando no Holocausto perpetrado pelos nazistas. As famílias de Stan Lee, Jerry Siegel Shuster e Joe Siegel (criadores do Superman), por exemplo, imigraram para os Estados Unidos fugindo dessa crescente perseguição.

Outra citação que aparece na Última Caçada de Kraven é o personagem Vermim ou Ratus. Criado pelo mesmo autor (DeMatteis) para uma história do Capitão América, um homem comum do Harlem é transformado num híbrido de homem e rato pelo segundo Barão Zemo (um nazista). Existe no nome e na aparência do personagem uma referência à história em quadrinhos MAUS de Art Spiegelman, que conta a vida do pai do autor, judeu, que sobreviveu aos horrores do holocausto, e que representa os judeus como ratos e os alemães como gatos (estadunidenses como cachorros, só por curiosidade).

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Citações iconográficas aparecem quando pensamos na propaganda antissemita que era distribuída na Europa no início do século XX e que representava os judeus como vermes ou ratos. Mais forte ainda é imagem da “grande aranha” – um dos símbolos da falsa ameaça judaica e que aparece na história como a força mítica que Kraven quer sobrepujar, representado pelo próprio Homem-Aranha.

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Na história, como falamos no Quadrinheiros Dissecam, Kraven acredita ter dominado a Aranha que seria a fonte de poder de Parker, mas o aspecto humano do Homem-Aranha, sua bondade, estão além do que o russo pode atingir e por isso ele comete suicídio. Neste momento dramático Kraven lembra de sua mãe – “Disseram que minha mãe era insana” – e vemos o sangue escorrendo pelo porta retrato que emoldura uma foto da família Kravinoff, remetendo à infância do caçador.

DeMatteis retoma o tema da infância, da influencia negativa dos pecados dos pais sobre seus filhos, o trauma e a doença mental, quando Peter Parker reencontra o Ratus na história – A Criança Dentro de Nós. Mas isso fica pro próximo post!

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13 respostas para As muitas camadas da Última Caçada de Kraven – o antissemitismo

  1. Luiz Ricardo disse:

    Vish, dessa vez vez não deu. As conexões entre a história e os preconceitos dos judeus no início do século XX ficaram bem descasadas, se descontarmos a iconografia. Como a proposta do site é ficar entre o senso comum e o academicismo, tudo bem, mas devia ter relevado isso durante o texto, amenizando as afirmações.

    • Luiz, uma história de um filho da nobreza russa que quer dominar uma ARANHA mítica, e para isso caça um personagem torturado chamado RATUS, tem referências ao antissemitismo do começo ao fim. Não é uma questão de opinião. A iconografia só fecha a fatura. Em nenhum momento eu disse que a história é sobre antissemitismo. Aliás esse assunto não aparece na trama, mas está no pano de fundo e conversa com biografia do autor e do criador do personagem principal.

  2. ramonmapa disse:

    Acho, só acho, que em uma história de um personagem chamado Homem-ARANHA, a imagem de uma ARANHA gigante, não é necessariamente uma referência ao antissemitismo. Se considerarmos ainda que é uma história reaproveitada de uma história do Batman, Kraven ter sido escolhido como o vilão da história talvez se dê mais pela personalidade perturbada dele do que por ser um nobre russo atrás do judeuzinho, sabe? Eu entendi as analogias, só que ver isso na história é só através de uma leitura enviesada.

    • Filho da nobreza russa quer dominar ARANHA mítica e para isso caça o RATUS – é uma linha cronológica histórica. Parte da campanha antissemita russa, da iconografia decorrente dessa campanha e culmina no holocausto. Não tem como negar as referências. Ele poderia ter escolhido outro vilão. Mesmo escolhendo o Kraven como vilão, não havia necessidade de colocar o RATUS na história (poderia ser qualquer outro). Porque exatamente essa composição de personagens com biografias tão claramente ligadas a esse assunto?
      Outra coisa – a hipótese do Homem Aranha ser judeu pode soar sem sentido aqui no Brasil, mas nos EUA era uma questão bastante recorrente, principalmente nos primeiros anos do personagem.
      Não dar crédito ao J.M Dematteis por ter colocado todas essas citações na narrativa é desprestigiar o talento do cara.

      • ramonmapa disse:

        Não entendi, foi o antissemitismo russo que levou ao holocausto? Não era o antissemitismo um sentimento muito mais antigo, que foi se fortalecendo já na Idade Média, com a proibição imposta aos judeus de trabalharem e possuírem terras? Na própria Alemanha o antissemitismo já era algo muito anterior à Segunda Guerra. O pai do Marx, advogado, se converteu ao protestantismo para não perder clientes, mas sempre sofreu com o sentimento antijudaico. Na Segunda Guerra, onde ocorreu o holocausto, a propósito, a Rússia já era União Soviética e não existia mais o governo dos Czares. Nesse sentindo, a iconografia do rato judeu, se russa, como o texto parece sugerir, não faz muito sentido, nem a figura do nobre russo antissemita identificado com o Kraven. DeMatteis até pode ter brincado com essa iconografia toda aí, (que aliás não me pareceu muito russa não) mas não é nenhum de longe o substrato da história, como o texto dá a entender. É preciso lembrar sempre que essa era uma história do Batman, em que essa iconografia não faria o menor sentido, então ela não foi concebida a partir dela, mas ela pode ter sido acrescida para dar um colorido à trama. E ainda acho que muita coisa aí é mais coincidência do que referência. Aposto que a cena do sonho com a Aranha gigante tinha sido pensada com um morcego gigante antes. Acho que essa é sim uma HQ com muitas camadas e que merece uma leitura bem detida. Mas tem tantas camadas que não é preciso colocar outras nela.

      • Então, vamos lá, mas é a última vez porque já tá rolando uma preguiça….

        1 – O antissemitismo russo imediatamente anterior a revolução de 1917 tem um marco: o livro Os Protocolos dos Sábios do Sião. A história começa a linha do tempo (que eu citei no outro comentário) a partir desse marco (citado no post). Portanto eu não estou desconsiderando nem negando o antissemitismo anterior a isso, só estou seguindo os elementos da narrativa de Dematteis
        2 – a iconografia do rato/verme/aranha para representar os judeus não é russa (eu não disse que era em momento nenhum). Mas ela é decorrência do acirramento do sentimento anti-judaico que teve forte influencia do livro Os Protocolos dos Sábios do Sião.
        3 – a história originalmente pensada para o Batman era apenas uma argumento de um vilão que enterra o herói vivo. Só isso. Não tinha nem poesia do Blake, nem antissemitismo, nem suicídio. Todos esses elementos foram acrescentados depois. Aliás é assim que se escreve uma história. Você parte de uma premissa e vai adicionando camadas de significado, referências, etc.

      • ramonmapa disse:

        Eu já acho que o Ratus foi escolhido pra história por razões bem distintas dessas aí. A primeira é que ele é criação do DeMatteis. A segunda é que a presença animalesca dele reforça a figura do Kraven como um caçador. Na ideia da terrível simetria, Ratus também é um caçador, que caça dos esgotos para sobreviver. Kraven o captura pra provar que é um predador – caçador – melhor que o Aranha. Tudo está ligado à simetria. Quando o Aranha não mata o Vermin, o Kraven percebe a quebra dessa simetria, a quebra da lógica Tigre/Cordeiro, e ele não só percebe que não é capaz de sobrepujar o Aranha, mas que ele não cabe mais naquele mundo, porque não existe mais a simetria que o sustentava. Por isso o suicídio. É uma história que lida com figuras arquetípicas, e animais sempre são usados nessas representações. Não concordo com a leitura feita aqui, mas se tiver alguma fonte bibliográfica pra sustentar essas teorias, lerei com muito prazer. Tenho muito respeito pelo trabalho de vocês e só quero contribuir para a discussão. Abraços.

      • Então Ramon, se tivesse uma entrevista com o Dematteis confirmando tudo o que eu disse sobre as referência da narrativa, meu texto seria apenas uma tradução pra trazer essa informação pro público que lê o blog. É o mesmo caso, por exemplo, das referências a Jesus Cristo e Moisés em relação ao Super Homem, que foram percebidas por algumas pessoas, e quando questionaram os criadores do personagem (Jerry Siegel e Joe Shuster) se era isso mesmo, eles disseram que não pensaram nisso, pelo menos não de forma consciente, mas que não dava pra negar que essas influências estavam lá. Mas agora só porque rolou esse debate entre nós eu fiquei interessado em levar isso pro autor. Vou escrever pro próprio J. M. Dematteis pra tirar essa a limpo. Te mantenho informado. Valeu pelo bom combate!

      • Então, mandei um tweet pro Dematteis e olha a resposta do cara:

        https://quadrinheiros.files.wordpress.com/2015/07/captura-de-tela-2015-07-02-c3a0s-18-01-08.png

        Minha teoria é que ele colocou a história do antissemitismo (do czar Nicolau II até o holocausto) como pano de fundo da história, e nem percebeu! Hahaha…!

      • ramonmapa disse:

        É cara. Eu acho que o foco dele mesmo era o esquema da simetria e a do caçador vencido. Mas é o que ele mesmo disse, dá pra ler de várias formas. Mas enfim, o texto me fez pensar muito sobre essa HQ que eu não leio há anos, e só isso já valeu muito pra mim. Obrigado por isso. Continuem o bom trabalho.

  3. ramonmapa disse:

    Se o texto se baseasse na dicotomia Tigre/Cordeiro do Blake que é mencionada no vídeo, teria muito mais coisa a dizer e com muito mais sentido. Essa sim foi um referência bacana, que dá pra se enxergar tanto no conteúdo da história quanto em aspectos formais.

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