“O propósito da minha existência é explodir”: Superman e o paradoxo da tolerância

grandes astros superman pensando 2

Uma reflexão a partir de Morrison e Popper, com uma participação especial do Último Filho de Krypton.

Um tema constante nas obras de Grant Morrison é o conflito entre Liberdade e Autoridade, trabalhado sobretudo em Os Invisíveis (1994-2000) e The Filfth (2002-2003). Caro ao autor, o tema não poderia faltar em uma de suas principais obras, All-Star Superman (publicada entre 2005 e 2008, aqui Grandes Astros Superman), com desenhos de Frank Quitely.

Logo no início da trama uma bomba humana suicida coloca em risco a vida da tripulação da primeira missão tripulada ao Sol, nave com o sugestivo nome Ray Bradbury, autor do clássico de ficção científica Fahrenheit 451. A narrativa de Bradubury é situada em um futuro distópico onde existe um anti-intelectualismo patente, em que livros são queimados e as pessoas que os leem, perseguidas.

Na obra de Morrison, quando Superman tenta proteger a tripulação da nave, a criatura declara:

“O propósito da minha existência é explodir. Você não tem o direito de limitar minhas ambições, fascista! Nenhum direito de ficar no caminho da minha autorrealização”.

grandes astros superman

Uma criatura que tem como propósito único a destruição e que não se importa com as consequências que seus atos podem ter a outras pessoas. Apenas a sua autorrealização importa. Mais interessante ainda é que o Superman, que age para proteger a tripulação da nave é acusado de ser fascista, porque está agindo para impedir que a criatura exploda (e aqui Morrison também aborda a acusação histórica do Superman ser fascista ou não). Ou assim ela pensava, pois o Superman consegue fazer com que ela exploda de maneira a não ferir a tripulação da nave. O ser foi criado por Lex Luthor. As palavras e pensamentos da criatura vêm dele, o que demonstra que ela era incapaz de pensar por si própria, apenas cumprindo o destino programado por Luthor.

Volta e meia lembro dessa sequência e o recente caso em que as redes sociais de Monark e do deputado federal Nikolas Ferreria (PL-MG) foram derrubadas por decisão judicial por apoiarem os atos criminosos e tentativa de Golpe de Estado ocorridas no dia 8 de janeiro me fez lembrar dela novamente.

O que une os dois é uma visão infantil da liberdade de expressão, onde tudo pode ser dito livremente e qualquer consequência a ser enfrentada pelo exercício da liberdade de expressão defendida é vista como autoritária. Como a criatura enfrentada pelo Superman, entendem que sua liberdade pode ser exercida de maneira irrefreável, ainda que cause danos ou ofenda outras pessoas.

Sobre isso o filósofo Karl Popper formulou o famoso paradoxo da tolerância, em que diz, basicamente, que uma sociedade tolerante pode tolerar tudo, menos a intolerância. Dito de outro modo, uma sociedade democrática não pode tolerar um discurso antidemocrático.

popper racismo tolerância

Nesse ponto algumas pessoas apontam que Popper não defendia exatamente isso. Para o filósofo, antes de se chegar à censura, as ideias intolerantes deviam ser combatidas por argumentos racionais, acreditando que a própria opinião pública racionalmente rejeitaria as ideias intolerantes, reconhecendo que deve haver mecanismos legais para a contenção de movimentos intolerantes, caso seja necessário. Porém, qual seria o exato momento em que uma ideia intolerante que deve ser tolerada para que seja rejeitada pelo debate público  foge ao controle da opinião pública e deve ser censurada?

O livro em que consta o Paradoxo é A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, publicado pela primeira vez em 1945. Se o que Popper entendia como opinião pública nos anos 40 tinha esse potencial de conter ideias intolerantes talvez isso não seja mais verdade na segunda década do século XXI (aliás, talvez nunca tenha sido, pois a democracia de Weimar foi incapaz de conter a ascensão do nazismo).

a sociedade aberta e seus inimigos karl popper

Popper faleceu em 1994. Ele não conheceu o mundo das bolhas algorítmicas com potencial radicalizador com as quais temos que conviver, em que há uma indústria de fake news que atua para criar uma realidade paralela que se se encaixa perfeitamente nas visões de mundo mais delirantes e intolerantes.

Na melhor das hipóteses a margem de controle, de possibilidade de rejeição de ideias intolerantes pela opinião pública está diminuída ou fragilizada. Na pior, ela é inexistente e aqui vale mais a aplicação prática de algo que foi vislumbrado por Popper do que uma interpretação acurada de seu pensamento ou os efeitos práticos de suas ideias que a defesa de sua ideia em si: a intolerância não pode ser tolerada, como atestam os atos de 8 de janeiro de 2023.

grandes astros superman criatura

Precisamos entender que existem pessoas como a criatura de Lex Luthor, que interpretam qualquer limitação aos seus desejos mais loucos e antidemocráticos como autoritários, que possuem um desejo irrefreável por destruição. Oportuno lembrar que Deleuze e Guattari viam no fascismo a existência de um Estado suicidário, uma espécie de organizador macropolítico da pulsão de morte dos indivíduos.

Um outro ponto merece atenção. A criatura não tinha vontade própria, ou, de outra forma, possuía uma programação prévia feita por Lex Luthor. Talvez seja a maneira de Morrison dizer que as pessoas radicalizadas e fanatizadas aderem ao fascismo, mas que isso não está necessariamente intrínseco a elas, tais quais as pessoas capturadas pela rede de desinformação existente. A crença de Morrison na Liberdade como moral e eticamente superior à Autoridade.

Talvez assim seja. No entanto, quando a criatura está prestes a explodir, essa é uma questão secundária. É preciso que algo seja feito, antes que seja tarde demais.

Sobre Nerdbully

AKA Bruno Andreotti; Historiador e Mestre do Zen Nerdismo
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13 respostas para “O propósito da minha existência é explodir”: Superman e o paradoxo da tolerância

  1. Marcos Sena disse:

    Muito boa explicação 👏👏👏👏👍

  2. Gustavo disse:

    Excelente reflexão utilizando filosofia, atualidades e quadrinhos 👏👏

  3. Rodrigo Belmonte disse:

    Excelente o texto! Vou compartilhar.

  4. AndRock disse:

    Muito bom o texto e a reflexão!

  5. Eduardo Mogin disse:

    Ok! Mas quem define o que deve ser tolerado ou não?!
    Com tantas fakenews de todos os espectros políticos, vão começar a chamarem a si mesmo de democracia e o que não respeitam de antidemocrático.

    • Nerdbully disse:

      Então, Eduardo, mas isso só acontece se você relativizar o conceito de democracia – que também é uma estratégia de antidemocráticos. Há uma ampla tradição na filosofia política, na história, na sociologia, na filosofia, enfim, nas Humanidades em geral que pode dar um norte para entender se um ato é democrático ou não. Dentre os muitos livros possíveis, eu recomendo o ‘Como as democracias morrem’ de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt e também ‘Como funciona o fascismo’ do Jason Stanley.

  6. Anderson Neves disse:

    Uma excelente reflexão, vejo que o cerne dos movimentos de extrema direita, tanto aqui no Brasil, quanto nos EUA, tem sido a manipulação e as chamadas “fale news”, notícias que a princípio me faziam rir, imaginava: quem acreditaria nisso … Hoje assumo meu equívoco, muitos se vestiram com a bandeira e partiram para uma guerra contra o próprio país, contra a própria democracia, baseados nessa manipulação.
    Tolerância sim, intolerância não se pode permitir.
    O conservadorismo moral é louvável, mas se apontado para si próprio, se eu como pessoa comum obrigar alguém a andar como eu ando, já é autoritarismo, se torna deplorável.
    Não vejo um paradoxo difícil de se entender… O nosso problema sempre foi o mesmo: a falta de respeito com o próximo.
    Nos basta seguirmos a nós mesmos sem julgar o outro, assumir que todos são falhos e merecem redenção.
    Todo monstro se quiser viver em sociedade deve entender que sua liberdade de expressão acaba, quando não ofende o direito do próximo. Respeito.

  7. Ray Bradbury disse:

    Perfeito!!!
    O que mais me entristece em fãs de HQ e nos chamados “Geek” é a falta de compreensão das obras que veneram. Vejo supostos fãs de V de Vingança e Star Wars pedindo intervenção militar e coisa do gênero.

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