A narração que abre os episódios da série clássica de Star Trek é um dos textos mais icônicos da cultura pop e da ficção científica. Mas esse texto não nasceu pronto. Foi lapidado de forma colaborativa tendo como principal força criativa aquilo que é inescapável: o prazo.
A série deveria estrear em 8 de setembro de 1966. No dia 1 de agosto o produtor da série, Robert Justman, envia uma comunicação escrita para o criador da série, Gene Roddenberry, para que ele escreva, sem demora, um texto de abertura que seria narrado pelo ator William Shatner, com duração de 15 segundos. Nos dias que se seguiram, uma sequência de ideias e de reescritas aparece nos documentos da Desilu Productions Inc., produtora que pertencia aos atores Lucille Ball e Desi Arnaz, e que lançou séries como Os Intocáveis (1959) e Missão Impossível (1966).
No dia 02 de agosto, John D. F. Black, um dos roteiristas da série, envia para Roddenberry um exemplo:
“Espaço…a fronteira final…infinito…silencioso… à espera. Essa é a história da nave espacial unida Enterprise…sua missão…cinco anos de patrulhamento da galáxia…para buscar e fazer contato com vida alienígena…para explorar…viajar pela vasta galáxia onde nenhum homem jamais esteve…uma JORNADA NAS ESTRELAS.”
Aqui a abertura ganha a frase “onde nenhum homem jamais esteve”, que havia sido o título do segundo episódio piloto, mas que não iria ao ar. O primeiro episódio piloto, com o capitão Pike, havia sido rejeitado pelos executivos da NBC, que pediram e aprovaram o segundo piloto, mas decidiram estrear a série em 1966 com o terceiro episódio produzido pela Desilu, intitulado The Man Trap (O Sal da Terra, como foi traduzido para o português). O segundo piloto, já com o capitão Kirk, veio a ser o segundo episódio televisionado.
Novamente John D. F. Black, na tentativa de encurtar o tempo da narração, refina o texto, abrindo mão do termo “nave espacial unida”:
“A U.S.S. Enterprise…nave espacial…sua missão…uma patrulha de cinco anos para buscar e fazer contato com vida alienígena…para explorar a infnita fronteira do espaço…onde nenhum homem jamais esteve…uma JORNADA NAS ESTRELAS.”
Outras versões não assinadas aparecem e trazem elementos chave como “estranhos novos mundos” e “tripulação audaciosa”:
“Essa é a história da nave espacial unida Enterprise. Com a missão de patrulhar a galáxia por cinco anos, a nave gigantesca visita colônias da Terra, regula o comércio e explora estranhos novos mundos e civilizações. Essas são suas viagens…e suas aventuras…”
” Essa é a aventura da nave espacial unida Enterprise. Com a missão de patrulhar a galáxia por cinco anos, a audaciosa tripulação da gigantesca nave explora a emoção de estranhos novos mundos, civilizações desconhecidas e povos exóticos. Essas são suas viagens e suas aventuras…”
Ainda no dia 02 de agosto, o produtor Robert Justman tenta dar uma cartada final, dizendo a Roddenberry que ele deveria usar esse texto:
“Essa é a história da nave estelar Enterprise. Sua missão: avançar o conhecimento, contactar vida alienigena e impor a lei galática… explorar estranhos novos mundos onde nenhum homem jamais esteve.”
Depois disso a documentação só volta a registrar conversas sobre a narração de abertura no dia 10 de agosto. Nela o produtor Robert Justman é enfático com Roddenberry, quando diz que a gravação na narração tem que acontecer o quanto antes.
No mesmo dia surge a redação final de Roddenberry:
“Espaço… a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise em sua missão de cinco anos. … pra explorar estranhos novos mundos … buscar novas vidas e novas civilizações … audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve.”
No texto final Roddenberry opta por “nave estelar”, descarta “vida alienígena”, colocando apenas “vida”, e incorpora o “audaciosamente” que havia aparecido de outra forma em versões anteriores. A sequência de textos mostra que a reescrita vai lapidando, deixando o texto mais direto (Espaço…a fronteira final), e menos ambíguo (sem menção a regular o comércio ou impor a lei galática, por exemplo). Podemos imaginar que o tom otimista (utópico) da série seja a razão para o criador ter feito essas escolhas.
De todo modo a narração de William Shatner e a música de abertura, composta por Alexander Courage Jr., criaram uma marca tão forte, que as tentativas de mudar isso não agradaram os fãs (como no caso da série Star Trek: Enterprise, de 2001).
Até aqui esse post é uma tradução e adaptação do texto To Boldly Go: the Hurried Evolution of Star Trek’s Opening Narration, mas aqui vai um complemento.
As traduções e dublagens também alteraram o texto. A versão dublada em português pelo radialista Antonio Celso nos anos 1960 tira de um trecho a palavra “estranhos” e acrescenta em outro trecho a palavra “pesquisar”. O tempo em que o texto é lido também é diferente da narração original, sem as pausas que servem de respiro para o tema musical:
“O espaço, a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise em sua missão de cinco anos para a exploração de novos mundos, para pesquisar novas vidas, novas civilizações. Audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve…”
A história da abertura de Star Trek é uma história de sutilizas que revelam não só como a escrita colaborativa e um prazo apertado podem fazer aflorar a genialidade, mas também a importância da tradução.
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Porque a Enterprise parece fazer em zigue-zague quando em movimento?