Decodificando medos no século 21.
O fim do mundo nunca sai de moda. O lançamento do jogo Horizon Zero Dawn II – Forbidden West, continuação da primeira edição do jogo, é a mais recente evidência disso. Com lançamento previsto para 18 de fevereiro, voltado para as plataformas de PS4 e PS5 da Sony, o jogo dá continuidade à saga de Aloy, caçadora de colossais feras robóticas num futuro distante.
(@PlayStation_BR, se quiser uma resenha batuta do novo jogo neste espaço, tamos aí. Nosso email é contato@quadrinheiros.com )
E na superfície, para quem não gosta de videogames, Horizon Zero Dawn (HZD) não passa disso, uma vasta experiência visual em que o jogador desbrava novos locais, acumula armas e habilidades, vencendo maiores e mais complexos obstáculos. Mas, por baixo de cenas deslumbrantes, nada é mais adequado do que chamar de “edição”, como se o jogo fosse um livro ou HQ.
Vale dizer, há cordilheiras de spoilers da primeira edição do jogo a partir daqui.
Requisito cada vez mais caro ao consumidor de videogames, HZD tem uma narrativa peculiar. Na história, a protagonista foi criada segundo os costumes dos Nora, uma tribo de valentes – e um tanto xenófobos – caçadores das montanhas. Uma das 5 tribos que aparecem no jogo, os Nora são governados por um conselho de matriarcas, cuja hierarquia é determinada pelo número de gerações que deram origem. Uma tataravó, portanto, é uma soberana inconteste entre os Nora. Encontrada quando bebê no pé de uma montanha, portanto, Aloy é uma pária social. Sem mãe, vive na periferia da comunidade ao lado do pai adotivo, o viúvo caçador Rost.
A curiosidade de Aloy sobre sua origem ocasiona a jornada da heroína e carrega o potencial de transformação do mundo em que ela vive. Na medida em que avança, descobrimos que a história se passa cerca de 1.000 anos no nosso futuro, um ecossistema exótico, repleto de florestas, roedores, búfalos, além dos mortais robôs animalescos. Por meio vestígios, ruínas e trechos de gravações corrompidas pelo tempo, o jogo detalha o que levou àquela realidade. A razão foi o conflito entre a humanidade e um indomável exército de robôs numa guerra devastadora.
O responsável pela criação das antigas máquinas foi Theodore Faro, fundador e CEO de uma gananciosa empresa, a “Faro Automated Solutions”. Faro é investidor de inúmeros setores, entre eles mídias sociais, entretenimento, habitação, exploração espacial, saneamento e, claro, militares. Como descobre Aloy, a companhia deliberadamente provocava conflitos entre nações vizinhas. Era estratégia comercial adotada para garantir a compra chips eletrônicos, inteligências artificiais e uma variedade de materiais bélicos.

Entre os artefatos, a Faro criou inovadores autômatos blindados, máquinas autorreplicantes com a capacidade de transformar toda biomassa em combustível. Sem controle, os robôs passaram a destruir sistematicamente todo ser vivo na face da Terra. A humanidade, assim como a maior parte de toda fauna e flora do planeta, foi extinta.
Este enredo é emblemático, um passo adiante do imaginário da Guerra Fria. Lá surgiram obras como Dr. Fantástico (Dir. Stanley Kubrick, 1963), O Dia Seguinte (Dir. Nicholas Meyer, 1983), Exterminador do Futuro (Dir. James Cameron, 1984) ou Mad Max (Dir. George Miller, 1979). No jogo, o que leva à catástrofe global não são armas nucleares nas mãos de governos em guerra ou lideranças obtusas. O imaginário do século XXI parece temperado por outro tipo de temor. Em HZD o apocalipse é resultado direto de um capitalismo desenfreado.

No entanto, o que levou ao fim do mundo parece menos importante do que vem depois. Na visão dos criadores da Guerrilla Games, produtora holandesa do jogo, há uma chance de sobrevida no pós-apocalipse.
Em meio à guerra contra as máquinas, antevendo a extinção inevitável, uma brilhante engenheira, Dra. Elizabeth Sobeck, arquiteta um plano dramático. Ex-colaboradora de Faro, ela é uma cientista ciosa do equilíbrio entre o avanço da tecnologia e a sustentabilidade ambiental. Protegida sob um bunker, Sobeck cria GAIA, uma entidade artificial dotada de empatia e sensibilidade.

A missão de GAIA é recriar a vida na Terra depois que o último ser vivo fosse eliminado. Contando com usinas de clonagem e produção industrial espalhadas em áreas estratégicas, GAIA deveria criar bolsões de vida orgânica e inorgânica. Além de recriar a flora e fauna da Terra, é GAIA quem dá origem às tribos humanas e feras robóticas que habitam o jogo.

A sugestão não podia ser mais direta. Em HZD, a sobrevivência só pode ser alcançada pela conciliação entre desenvolvimento tecnológico, distribuição dos recursos e temperança ambiental. Seria ingênuo, no entanto, pensar que essa ideia é uma conclusão inovadora dos autores do jogo.
Depois da Revolução Francesa, a mais emblemática ofensiva contra a concentração de privilégios, não faltaram pensadores que criticavam um futuro governado pela industrialização desmedida. Karl Marx (1818-1883) foi o sujeito que viu no capitalismo um modelo de exploração e preservação da desigualdade (embora capaz de gerar maiores prodígios que as pirâmides do Egito). Mas antes dele, gente como Saint-Simon (1760-1825) e Augusto Comte (1768-1857), em outro sentido, viam na indústria o canal ideal para uma possível reparação de injustiças.
Em obras como O Catecismo das Indústrias (Saint-Simon, 1823) e Curso de Filosofia Positiva (Comte, 1830), os pensadores franceses indicavam que uma saída para o capitalismo seria alcançado por um processo educativo. Como imperativo moral, era preciso pacificar os anseios dos “industriais” (o que englobava tanto os operários quanto os donos de fábrica) e atender as necessidades de toda população, especialmente dos mais vulneráveis. Limites rígidos para a ganância industrial deviam ser impostos, se necessário, por meio da força e sob a direção de uma elite esclarecida. Este “cérebro” social, o promotor da conciliação de interesses conflitantes, para eles, era o Estado.

(Apud Revista Illustrada . Rio de Janeiro. n. 569, nov.1889, disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=332747&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=4135 Acesso em 25/01/2022)
Já em HZD, a exemplo de Aloy e na falta de um Estado organizador, o equilíbrio entre a técnica e o respeito ambiental – um imperativo moral saint-simoniano – é um valor humano individualizado pela heroína. A missão de Aloy, portanto, seria potencialmente educativa.
Já neste século, existem várias obras que seguem a mesma premissa narrativa de HZD, de que o capitalismo levará à catástrofe. Wall-E (dir. Andrew Stanton, 2008), Avatar (Dir. James Cameron, 2009), Blade Runner 2049 (dir. Denis Villeneuve, 2017) e Não Olhe para Cima (dir. Adam McKay, 2021), ainda ruidoso no debate público, criticam ou debocham em alto contraste das intenções pseudo-humanitaristas de titãs industriais.
No entanto, não faltam também aquelas que depositam na iniciativa privada – e no talento individual de alguns milionários – o manual de instruções para o sucesso ou até para solução das piores catástrofes. Vale lembrar das constrangedoras cinebiografias (para muitos, hagiografias) de Steve Jobs (Steve Jobs, dir. Danny Boyle, 2015 / Jobs, dir. Joshua Michael Stern, 2013), Mark Zuckberg (A Rede Social, dir. David Fincher, 2010), Howard Hughes (O Aviador, Dir. Martin Scorsese, 2004). Além destes, convenhamos, o que é Tony Stark senão um Elon Musk mais carismático?

Como em tantas obras de arte, HZD é mais um exemplo de um paradoxo. Ambientalismo e identitarismo (vale repetir, a protagonista é uma mulher) são as últimas instâncias de uma temática potencialmente pan-ideológica. Traz uma crítica (ao capitalismo, à indústria bélica, à devastação do meio-ambiente, ou seja lá o que for) por meio de uma obra voltada para o consumo em massa. E claro, qualquer impulso disruptivo que os autores da narrativa imputaram ao jogo fatalmente acaba subtraído ao seu significado estético mais marcante. No caso, pode ser estilo tecno-tribal de Aloy, ou das fascinantes feras robóticas que povoam o jogo.

Talvez uma catástrofe como a de HZD, presente em tantas obras que tem o fim do mundo como fundo narrativo, seja inevitável. Mas como acontece no jogo, o mais provável é que quem quer que sobreviva não se lembre dos motivos. Restará sobreviver nos escombros de um passado que poucos se deram o trabalho de esclarecer. O que provoca a pergunta: em tempo que há quem creia em Terra plana, será que o apocalipse já não aconteceu?