Primavera em Tchernóbil: uma HQ sufocada pela autoria

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Primavera em Tchernóbil mostra os limites da compreensão sobre a tragédia.

O acidente nuclear de Chernobyl tem dimensões difíceis de imaginar, mas algumas obras dão uma noção e aguçam nossa curiosidade com relação ao tema.

Primavera em Tchernóbil é um quadrinho produzido pelo quadrinista francês Emmanuel Lepage e lançado na França no ano de 2012, no Brasil foi publicado pela Geektopia em 2020. O quadrinho retrata uma expedição que foi feita à zona de exclusão localizada na Ucrânia, criada em decorrência do acidente nuclear da usina de Chernobyl* ocorrido em 26 de abril de 1986. O quadrinista se junta a outras pessoas que fariam uma expedição ao lugar com experimentos com plantas, máquinas, etc. e produziriam relatos sobre o lugar e as pessoas que ainda vivem na região.

A intenção do autor era desenhar as paisagens e representar a dor e sofrimento do lugar por meio de seus desenhos. Intenção interessante, porém não transmite a dimensão do que foi e é o acidente. A elaboração do quadrinho desde sua ideia já tinha a chance de se tornar algo bastante desrespeitoso, ao invés de representar algo que ajude o mundo e principalmente os povos eslavos a pensarem a tragédia.

Um relato sobre Chernobyl é algo de dimensão profunda e que exige um cuidado redobrado, especialmente quando tratado por estrangeiros. Para os povos de ascendência eslava chegarem ao dia 26 de abril de 1986 foi necessária muita história e discussão que claramente resultou em uma tragédia humana sem precedentes.

Um quadrinista francês produzir um material sobre esse lugar e essa história é algo que desde o início exigia certo cuidado por parte do artista e das pessoas envolvidas. Mas antes de falar da obra em si, gostaria de destacar o trabalho da edição nacional da Geektopia, que entregou um álbum em material de qualidade e tamanho que conseguem reproduzir toda a triste beleza do traço de Lepage.

O traço e e as cores apresentadas reforçam o clima tenso do quadrinho e fazem jus ao ato tema. A introdução é uma recapitulação histórica aliada a trechos de entrevistas de pessoas que passaram pelo acidente contidas no livro Vozes de Tchernóbil, da jornalista e escritora Svetlana Aleksiéitch. As primeiras páginas são de tirar o fôlego pela angústia que conseguem provocar no leitor, pois os relatos são dolorosos e as imagens fortes chocam quando pensamos sobre o quão real é Chernobyl. A reprodução das imagens envolvendo o acidente e os textos de Aleksiévitch contidos no livro são o ponto mais alto do álbum.

Após a apresentação do quadrinho temos o relato de Lepage de fato. Na história vemos ele e os amigos conversando sobre a ida à zona de exclusão de Chernobyl e a narrativa descamba logo em seguida para relatos demasiadamente pessoais sobre problemas que o quadrinista sofreu antes da viagem – uma enfermidade em uma das mãos – e sobre os ímpetos que o levaram até lá. Nas palavras dele “Eu não vou ser apenas uma testemunha neste mundo, vou me envolver! Vou ser ativo! Um militante!” e logo em seguida fala da empolgação de fazer este relato jornalístico e da viagem empolgante que tinha pela frente.

A fala do autor remete a uma boa intenção de militar em prol do sofrimento dos povos envolvidos no acidente, mas honestamente a obra se torna o relato de alguém que está em busca de se tornar reconhecido por uma grande obra. São várias e várias páginas relatando os problemas de sua mão e seus medos antes da viagem, incluindo alguns devaneios onde reflete sobre sua vida e suas relações com a arte desde a juventude. Importa mais a subjetividade do autor em relação ao que está sendo retratado do que o retratado em si, algo no mínimo desrespeitoso para com as vítimas da tragédia.

Isso fica claro no quadrinho pois assim que o grupo chega à zona de exclusão eles visitam a família de um liquidador (liquidadores foram as pessoas que ajudaram no combate ao acidente). Tudo remete a um povo estrangeiro sem a devida empatia, que parece tratar os que vivem ali como meramente algo a ser relatado. Inclusive com Lapage fazendo um desenho do rosto de Tola que acaba se parecendo com uma caricatura, nas palavras do próprio autor, e deixam o ucraniano ofendido com a ilustração.

É curioso como o quadrinista traveste seu narcisismo em ímpetos humanitários, pois se caso ele de fato quisesse ajudar aquelas pessoas teria prestado mais atenção à história daquele povo e ao livro de Svetlana Aleksiévitch – que o autor supostamente leu. Antes de tentar colocar uma opinião e distribuir idoneidade ao mundo o artista deve entender sobre o que ele está falando, caso contrário pode cometer erros e ofensas profundas a um povo. Chernobyl não acontece do dia para a noite, existem milhões de acontecimentos e debates dos povos eslavos até o momento culminante da tragédia.

Antes de pensarmos em tocar uma vida humana, mesmo que seja em prol de uma suposta ajuda, precisamos saber muito bem como estamos localizados na discussão, quem somos, os acontecimentos que carregamos do passado, nossas origens e o que as origens do outro implicam também. Pois ímpetos humanitários não são suficientes para que uma contribuição seja de fato honesta com os envolvidos, o ser humano precisa examinar constantemente seus ímpetos e seus conhecimentos e ter a humildade de saber se está apto a realizar uma tarefa de tamanha delicadeza e empatia. Para este caso temos já um livro de relatos feito sob um cuidado gigantesco por estar justamente pautado na história e e respeito a um povo.

Vozes de Tchernóbil da Svetlana Aleksiévitch é um livro de relatos que registra entrevistas com pessoas que estiveram envolvidas de alguma maneira no acidente. A autora nasceu na Ucrânia, que é o local do acidente, e cresceu na Bielorussia, o lugar mais afetado pela tragédia e ela relata no livro:

Durante muito tempo, eu não quis escrever sobre Tchernóbil. Não sabia como escrever sobre isso, com que ferramentas, a partir de qual perspectiva.

E mesmo assim ela não buscou falar de cima de sua idoneidade do acidente, ela deu voz ao povo, ao povo comum que viveu e que é a base daquela terra.

Diante do acidente de Tchernóbil, todo mundo se punha a filosofar. Todos se tornavam filósofos. As igrejas ficaram repletas de crentes e de pessoas ainda havia pouco ateias, as quais buscavam respostas que não podiam obter da física e da matemática. O mundo tridimensional se abriu, e eu já não encontrava aqueles valentões que haviam jurado sobre a Bíblia do materialismo. Incendiou-se a chama da eternidade. Calaram-se os filósofos e os escritores, expulsos dos seus canais habituais da cultura e da tradição. Naqueles primeiros dias, era mais interessante conversar não com cientistas, funcionários ou militares com muitas medalhas, e sim com os velhos camponeses. Gente que vivia sem Tolstói e Dostoiévski, sem internet, mas cuja consciência de algum modo continha uma nova imagem de mundo. E ela não se destruiu.

Outro ponto é que após o encerramento do livro temos um comentário sobre o turismo nuclear, especialmente do povo ocidental e que é claramente uma crítica do povo bielorusso.

Vocês acham que isso é delírio? Enganam-se. O turismo nuclear goza de uma grande demanda, sobretudo entre os turistas ocidentais. As pessoas perseguem novas e fortes emoções, pois encontram poucas delas num mundo já excessivamente condicionado e acessível. A vida se torna chata e as pessoas desejam algo eterno. Visitem a Meca nuclear. A preços módicos.

Extraído de materiais dos jornais bielorrussos, 2005

No livro temos diversos outros comentários que mostram como nós não temos capacidade de compreender a dimensão real de Chernobyl. É dito no livro que é o principal acontecimento do século XX, que Chernobyl forçará a existência de filósofos, que o mundo se deslocou naquele momento e todo tipo de comentário enigmático sobre um futuro que já chegou e nós não temos capacidade de compreender. Segundo a própria autora “Hoje cada bielorrusso é uma espécie de ‘caixa-preta’ viva, registra as informações para o futuro. Para todos.”

E pra entender esse ponto talvez seja interessante observar uma música envolvendo o acidente produzido por uma banda bielorussa, o Molchat Doma. A música Волны (lê-se Volny, que significa Ondas) fala sobre o acidente e se inicia com mais de 15 segundos de silêncio. A letra fala sobre uma nova era, diz que onde houver morte ela estará lá e sobre o rugido do trovão que vai nos separar. O clip é uma filmagem de drone sobre as ruínas de Pripyat e Chernobyl. A banda não aparece por um segundo sequer no clip, as batidas da música são inconstantes, desconhecidas e inesperadas. Essa música possui toda uma carga emocional e confesso que sendo brasileiro é quase impossível apreender todas as suas minúcias e sentimentos. O guitarrista da banda, Roman Komogortsev, que atualmente tem 27 anos, comentou há alguns meses no instagram que Chernobyl é a maior inspiração para suas músicas.

Lepage termina dizendo que foi para Chernobyl esperando ver degradação e só viu belas paisagens e pessoas vivendo suas vidas, ou seja, só encontrou vida em um lugar que é sinônimo de morte. Ideias semelhantes aparecem em relatos do livro da Svetlana Aleksiévitch, porém vindo de um autor estrangeiro se assemelha a uma mensagem de melhora, uma mensagem de esperança em meio a uma catástrofe ainda inexplicável para o povo daquele lugar que ainda sofre muito os efeitos do acidente.

Segundo Aleksiévitch em seu discurso no prêmio Nobel proferido em 7 de dezembro de 2015, quando o venceu pelo conjunto da obra:

Logo depois da guerra, Teodor Adorno, abalado, disse: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro”. Um dos meus professores, Aliés Adamóvitch, um nome que quero citar hoje com gratidão, também considerava que compor prosa sobre os pesadelos do século XX era sacrilégio. Aqui, não se tem o direito de inventar. Deve-se mostrar a verdade como ela é. Exige-se uma “supraliteratura”, uma literatura que esteja além da literatura. É a testemunha que deve falar. Pode-se pensar em Nietzsche, que dizia que não há artista que possa suportar a realidade. Nem a superar.

Por fim, o quadrinho teria sido uma obra excelente caso tivesse apenas as ilustrações do lugar e não a narrativa. Se fosse um quadrinho mudo, pois o autor faz representações da radiação de maneiras muito curiosas e contrastantes que nos faz pensar sobre a tragédia, mas seus comentários que se misturam consigo e com sua vida dão outro teor para as imagens que poderiam ter sido de grande valor artístico, filosófico, reflexivo e humano para que nós como espécie e respeitando os principais envolvidos possamos pensar nossa posição no mundo depois desse acontecimento.

Lepage possui um talento enorme na elaboração de suas ilustrações, porém a mistura a história do acidente aliado à sua personalidade e seus ímpetos explícitos na história, que acabam criando uma narrativa pessoal pobre sobre um assunto muito sério e do qual ele é completamente estrangeiro. Não somente em sua nacionalidade, mas em seus estudos sobre o lugar, língua e história daqueles povos que chegaram ali por algum motivo. A história de um povo não está desconectada de seus eventos modernos, é preciso compreender para respeitar antes de tocar qualquer aspecto humano e não foi o que Lepage fez em sua HQ.

Fica a recomendação da leitura do livro Vozes de Tchernóbil de Svetlana Aleksiévitch e a reflexão acerca da música Волны do Molchat Doma, pois ambos possuem o esmero e o respeito necessário para abordar o acontecimento. Não vou negar que tudo isso gera um desconforto enorme em quem acompanha, mas é impossível que tenhamos o devido respeito com acontecimentos tão impactantes da humanidade sem sentir muito desconforto e dor.

* A transliteração mais comum da palavra Чернобль no Brasil e no mundo é Chernobyl, porém tanto os livros da Svetlana quanto o quadrinho de Lepage utilizam uma aproximação mais honesta com Tchernóbil, pois a letra Ч possui uma pronúncia de algo como “tch”, para ser escrito como Chernobyl precisaríamos que o nome começasse com a letra ш (che). Para manter o padrão conhecido no ocidente resolvi utilizar Tchernóbil apenas quando me refiro aos livros.

Sobre John Holland

Procurando significados em páginas de gibi enquanto viaja pelos trilhos do conhecimento e do metrô. Sempre disposto a discutir ideias e propagar os quadrinhos como forma de estudo, adora principalmente a Vertigo, está sempre disposto a conhecer novos quadrinhos e aprender o máximo de coisas possível!
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Uma resposta para Primavera em Tchernóbil: uma HQ sufocada pela autoria

  1. Alessandro Augusto Alves Pinto disse:

    Um artista não consegue dissociar totalmente sua arte de seus sentimentos (e tampouco deveria).Isso fica claro na obra, tanto na narrativa visual como escrita. É o relato visual de um conflito interno, de uma perda fundamental (a da capacidade de expressão) e do reencontro da mesma no lugar e circunstância mais improváveis. A vida segue, acha seus caminhos. LePage não está calando ou ignorando a dor e o sofrimento das pessoas. O que foi Tchernóbil até 1986 é diferente do que foi após o acidente e também diferente do que se encontra lá hoje. Achei a obra inquestionavelmente poética. Fossem apenas as ilustrações, seria um portfolio, não uma história.

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