Você seria capaz de ler as 500.000 páginas de quadrinhos que a Marvel produziu desde 1961 até hoje e sobreviver para contar?
Durante seis décadas a Marvel produziu (e continua produzindo) histórias de diferentes personagens que coabitam um mesmo multiverso. É a narrativa ficcional mais longa já contada na história da humanidade, que se espalha por aproximadamente 27.000 edições ou 500.000 páginas de ilustrações e texto. Uma narrativa tão densa e cheia de reescritas que é impossível mapear tudo num único diagrama. Não importa de que maneira você leia, que personagens você siga, qual recorte você escolha para mergulhar nesse oceano de histórias, cada leitor vai construir seu próprio mapa de navegação. Mas será possível ler tudo em busca de uma síntese?
Essa foi a proposta do escritor e crítico Douglas Wolk, que ele relata no seu livro – All of the Marvels. Depois de anos lendo todas as edições regulares já publicadas ele propos algumas maneiras de olhar para essa massa de histórias, dividindo em fases, listando recortes temáticos possíveis, analisando personagens e autores.
Num vídeo onde Wolk fala sobre a tragetória de alguns personagens (uma palestra que ele deu numa loja de quadrinhos, quando ele ainda estava no processo de leitura de tudo), ele destaca as formas que o leitor pode escolher para desbravar tamanha ficção em quadrinhos. Uma obvia é seguir um personagem, seu título mensal, sua participação em títulos de outros personagens, para entender seu arco de amadurecimento e as repetições temáticas que o definem. Outra é seguir um roteirista por diferentes títulos e personagens para ver que temas e características aquele criador coloca nas histórias. Acompanhar os grandes eventos da editora, que de modo geral agregam muitos personagens, e espalhando por diferentes títulos, é um tipo possível de leitura mais complexa, já que as ramificações levam a mais histórias.

Palestra do Douglas Wolk na loja Books with Pictures, em Portland (2017).
Ler a partir do espelhamento das histórias com o mundo real é um dos recortes possíveis mais interessantes. Nesse formato da para entender como guerras, mandatos presidenciais, conquistas e derrotas de segmentos da sociedade civil, desenvolvimentos tecnológicos e traumas coletivos são retratados nas histórias e influenciam os roteiristas nos seus textos e subtextos. Outra possibilidade são as leituras que sigam um recote estilístico, agrupando as histórias tem tenham um tom de comédia ou de horror, ou que tenham um determinado rítmo, etc.
De todas as possibilidades de aproximação e de leitura, diante dessa massa de narrativas, a única coisa que Douglas Wolk não recomenda é a leitura cronológica. Diferente de outas mídias, as histórias em quadrinhos da Marvel passam por constantes revisões, reescritas, fins e recomeços, que acontecem em todos os seus títulos, mas que não são sincronizadas. Um personagem pode ter sua origem recontada, ou pode recomeçar seu arco original sem que outros personagens passem por isso naquele mesmo momento cronológico (por exemplo, as várias vezes que a identidade de personagens como Homem-Aranha e Demolidor foram reveladas para o público e depois isso foi apagado da memória de todos, sem que esse “recomeço” se repetisse com outros personagens).
Olhando para longos anos de publicação, Wolk busca por padrões e características que não se repetem. A partir daí ele organizou algumas fases pelas quais a maior parte dos personagens passou:
Apresentação (1961 – 1968) – onde são apresentadas as principais motivações dos personagens;
Desenvolvimento (1968 – 1980) – onde essas motivações são alcançadas ou frustradas definitivamente e nós leitores acompanhamos as consequências disso (como a morte de Gwen Stacy para o Homem-Aranha);
Sombras e repetições (1981 – 1999) – onde os ciclos e motivações originais se repetem em cenários sombrios (como em Dias de um Futuro Esquecido, dos X-Men), ou aparecem personagens espelho (como Venon e a Saga do Clone para o Homem Aranha);
Escalada do caos (2000 – 2015) – onde uma sucessão de histórias cada vez mais desastrosas e caóticas carregam os personagens para longe de seus ciclos originais (como em Guerra Civil para o Homem-Aranha, ou Dinastia M para os mutantes), muitas vezes levando as histórias para soluções drásticas na intenção de trazer de volta o ciclo original (como o One More Day do Homem-Aranha);
Herdeiros (2015 – ?) – onde versões jovens dos heróis aparecem (que não são versões sombrias ou espelhadas como anteriormente), consolidando a ideia de um multiverso, e abrem o debate sobre o conflito de gerações.
Mas All of the Marvels vai além dessa tentativa de organizar e mapear as histórias. O ponto de partida da leitura de Wolk é a Fantastic Four #51 (1966), que abre com a arte de Jack Kirby mostrando um Ben Grimm, sob uma chuva torrencial, desolado com a ideia de nunca mais voltar a ser humano, e algumas páginas mais à frente Reed Richards contempla as dimensões ilimitadas da encruzilhada do infinito (na colagem genial de Kirby). A euforia do Sr. Fantástico é um prelúdio de tudo que a Marvel viria a ser.
Como diz Junot Díaz, o crítico do New York Times que resenhou o livro de Wolk: “O elemento fantástico/cósmico, sem a dimensão da angústia humana, é história para criança. A angústia humana sem a dimensão fantástica é o folhetim. Mas os dois combinados nas proporções corretas equivaleram a um novo tipo de vibranium imaginativo.”
É a fórmula da Marvel que hoje sustenta os filmes e séries de TV, que, como um conjunto de histórias audiovisuais que compõe um mesmo universo, também é um fenômeno único!
O projeto do livro tem Instagram e Tumblr. Agora só falta uma editora a se animar e publicar o All of the Marvels por aqui…
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