No meio de tanta desinformação, os canais, podcasts, blogs e sites dedicados à cultura nerd, não fazem checagem de informação e disseminam mentiras. Mas é tudo em nome da liberdade de expressão!

Em 2012 a imprensa brasileira comprou a narrativa da prodígio Bel Pesce. Alimentada por uma estratégia de assessoria de imprensa, a história de superação de uma brasileira que foi para os EUA, estudou no MIT, trabalhou na Google, abriu uma empresa inovadora (Lemon Wallet), vendeu a empresa por milhões de dólares e voltou para o Brasil para criar startups, foi aceita sem nenhum tipo de checagem. Entre 2012 e 2016 ela ganhou colunas em jornais, espaço em rádios como a CBN, criou financiamentos coletivos para projetos e embolsou muito dinheiro. Em 2016 um desses financiamentos (da Hamburgueria Zebelélo) deu errado, um youtuber investigou o currículo da moça e o castelo de cartas caiu – a história contada e o currículo dela não eram de verdade. Depois de alguns meses de polêmica, onde os jornais chegaram a editar textos publicados em anos anteriores para tirar as referências e citações que haviam dado a Bel Pesce, ela sumiu do mapa.

A checagem que foi feita em 2016 não precisou de uma estrutura investigativa de porte. Algumas horas no site do MIT, da Google e da Lemon Wallet foram suficientes para deixar claro que a história da Bel Pesce tinha muitos furos. Com a notícia, a imprensa foi mais fundo, entrevistando o fundador da Lemon e mandando repórteres até o MIT. Mas o fato é que a checagem era simples e não foi feita. A pergunta aqui é  – por que não foi?

Nos últimos meses estamos acompanhando o caso da Carol Zara, uma brasileira residente no Canadá. Nós recebemos e-mails de uma assessoria de imprensa oferecendo uma entrevista com a moça para o nosso podcast. A narrativa do e-mail dizia que Carol Zara era uma autora de quadrinhos independentes, que teve um título – Alien Toilet Monsters (ATM) – publicado pela Omnimorphic Comics com grande sucesso, e por causa disso havia sido sondada pela DC Comics para escrever a Yara Flor (Mulher-Maravilha brasileira do Future State). Vários podcasts chamaram a autora para uma conversa e falaram sobre o mercado de quadrinhos independentes no Canadá e nos EUA e sobre essa conversa que ela teve na DC. No youtube o canal Central HQ (canal com mais de 70 mil inscrito) fez um vídeo sobre o Alien Toilet Monsters.

Alguns dos podcasts brasileiros que entrevistaram a Carol Zara logo depois da ação da acessoria de imprensa.

Nos textos, nos podcasts e nos vídeos uma informação recorrente é que Alien Toilet Monsters vendeu mais que The Walking Dead, Batman e Superman. Não consegui confirmar essa informação em nenhum site. Nas estatísticas da Diamond Comics Distributor Inc, o ATM não aparece nem no final dessas listas. Além disso, nas entrevistas algumas das falas da moça são impressionantes – ela afirma que as ideias que ela tem para a histórias estão dois anos à frente do que as editoras estão fazendo, que ela escreve como o Alan Moore, que o empresário que descobriu as Tartarugas Ninja adorou o ATM e queria investir (mas não deu certo), etc…

Uma rápida pesquisa mostra que o Alien Toilet Monsters teve dois números publicados. Em canais como o Bleedingcool e o ComicVine o quadrinho está listado e resenhado e tem até alguns poucos vídeos da época do lançamento que reproduzem o release. Na Amazon dos EUA e em outros sites o crédito dos desenhos, das capas e do roteiro são de um cara chamado Eric Barnett. Em alguns outros sites a Carol Zara é creditada como co-autora.

Tentei saber mais sobre o Eric Barnett. Os desenhos da capa são muito bons e algumas páginas internas mostram um trabalho bem feito (melhor nas cores que no traço, na minha opinião). Mas as redes sociais do artista são bastante escassas. O Instagram dele tem mais artes de modelagem 3D do que desenhos. Ele tem uma conta no Pinterest e uma no Deviantart, que é um espaço muito usado por artistas para divulgar seus trabalhos, mas também tem poucas postagens. 

Mas agora vem a cereja do bolo! Alguns dias atrás recebemos por e-mail uma matéria pronta, afirmando que a Carol Zara estava sendo sondada para ser a nova vice-presidente da DC Comics. A matéria já veio pronta, com as fotos e texto assinado pela Flávia Magalhães (da Casa de PR que faz a assessoria da moça). Imediatamente o site Baraonerd.com publicou a matéria na íntegra, sem nenhuma ressalva. Alguns sites e perfis no instagram já estão replicando a notícia. 

Ainda que eu tenha perguntas sobre o Eric Barnett (se ele existe mesmo ou é uma criação da Carol Zara), sobre a real recepção do ATM no mercado independente dos EUA e Canadá, e sobre essa assessoria de imprensa “ousada”, o que me incomoda mais é a falta de responsabilidade dos produtores de conteúdo aqui do Brasil.

Eu entendo que a maioria dos youtubers, podcasters e bloguers são aficionados por histórias em quadrinhos que dedicam seu tempo extra para produzir conteúdos sobre a cultura pop, mas muitos ganham algum dinheiro com isso. E mesmo se não tem dinheiro envolvido, quando alguém se dispõe a “informar” um público sobre um determinado assunto, a responsabilidade pela verdade da informação vem junto. Como no caso da Bel Pesce, comprar, sem checar, uma narrativa, pode ser um tiro no pé. No meio a tanta desinformação que assola as redes sociais (especialmente nos últimos anos), já passou da hora de não nos deixarmos levar pelo canto das sereias.

E esse comentário me leva à reflexão final. Em parte essa cegueira é sexismo. A maior parte dos produtores de conteúdo sobre cultura pop em geral e histórias em quadrinhos especificamente, são homens. Se o Eric (sem a Carol) viesse do Canadá contando essa história, tenho certeza que o rigor na apuração dos fatos seria bem maior. A Carol Zara é, além de co-autora, personagem da Alien Toilet Monsters e nas páginas dos quadrinhos ela é retratada como as mulheres são na maior parte dos quadrinhos – como um objeto de desejo dos leitores. Essa fantasia é o que explica a cegueira de um lado e o ódio de outro. A Bel Pesce foi xingada e cancelada violentamente depois que sua história foi desmentida, mas o peso da responsabilidade não foi sentido com essa mesma contundência por aqueles que ajudaram a inflar as histórias que ela contou. Sejamos responsáveis! Temos que confirmar as informações antes de alimentar os leitores/seguidores com informações falsas ou discutíveis. Se não há certeza, isso precisa ficar claro no conteúdo. 

Bom, e agora que eu desconstrui a Carol Zara, aumenta muito a chance dela ser entrevistada pelo Luciano Cunha no Terça Livre pra falar sobre liberdade de expressão!!! 

ATUALIZAÇÃO [24/09/21]

Devido à repercussão desse texto, a assessoria de imprensa da Carol Zara publicou as seguintes imagens:

O jornalista Cesar Gaglioni está apurando o caso. Você pode acompanhar pelos twitter dele, aqui.Vejam o fio que ele publicou.

Nós também estamos apurando as informações as publicaremos aqui, em futuras atualizações. A própria Carol Zara entrou em contato solicitando espaço para dar a própria versão dos fatos, que será publicada aqui quando (e se) enviada.

Mas volto a insistir no ponto do texto. São os veículos que não fizeram a apuração ou ao menos as ressalvas necessárias que devem ser cobrados. Lembrem-se que sem uma imprensa que reproduzia letra por letra o press release do Ministério Público de Curitiba, não ia ter capa de revista com o juiz vestido de Superman! Olha no que deu!