A última minissérie do personagem transforma o herói quase em um deus, mas sua origem remonta ao ponto mais baixo da história da Marvel.
Quando a Marvel chegou à beira da falência no final dos anos 1990, os cortes na equipe criativa e o caos administrativo levaram a editora a contratar a Event Comics para tocar um dos projetos da Casa das Ideias. A linha Marvel Knights ficou então a cargo de Joe Quesada e Jimmy Palmioti (sócios da Event Comics), que reuniram um time de criadores independentes (entre eles Brian Michael Bendis) para criarem histórias fechadas de personagens do terceiro escalão da Marvel. É nesse contexto de reinvenção da Marvel que nasce o personagem Sentinela (The Sentry) pelas mãos do roteirista britânico Paul Jenkins em uma minissérie publicada originalmente entre 2000 e 2001.
Jenkins e o desenhista Jae Lee já haviam criado a premiada minissérie dos Inumanos também pelo selo Marvel Knights e, por causa da qualidade do trabalho da dupla, o novo editor chefe da Marvel (ele mesmo, Joe Quesada), deu carta branca para que desenvolvessem um novo personagem.
Na história somos apresentados a Robert Reynolds, um cara comum que aparentemente sofre de esquizofrenia, ouve vozes, acredita ser um super-herói responsável por conter uma terrível força destruidora (o Vácuo), mas vive o drama de não saber o que é real e o que é fantasia.
Os delírios de Reynolds são apresentados com traços que emulam as criações de Stan Lee e Jack Kirby da década de 1960. O passado do personagem mostra que ele foi o primeiro super-herói da Marvel, que também ganhou seus poderes com uma variação do soro do super-soldado, e que ele inspirou outros heróis, como o Homem-Aranha e Reed Richards. A peculiaridade do Sentinela é que seu arqui-inimigo era na verdade ele mesmo (sua dupla personalidade, sua sombra). Por causa disso a existência do Sentinela inevitavelmente trazia a existência do Vácuo, e o poder destrutivo do vilão obrigou os outros heróis (com o consentimento de Reynolds) a apagar da memória de todos que um dia o Sentinela existiu.
A minissérie original acaba assim, sem deixar claro se tudo não passou de um surto de um personagem doente, ou se de fato o Sentinela era real. Mas Quesada e sua turma tomaram as rédeas da editora e começaram a mudar o eixo das publicações. O direito sobre personagens, como o Homem Aranha e os X-Men, foram vendidos para o cinema para salvar as finanças, e o roteirista Brian Bendis estava trabalhando com os Vingadores, trazendo esse grupo do segundo escalão de heróis da Marvel para o centro das histórias da editora.
Um dos arcos mais divertidos dessa fase é o que reintroduz o Sentinela no universo principal, assumindo sua existência. O arco que foi publicado na revista dos Novos Vingadores a partir de 2005 mostra o recrutamento dos heróis para a nova formação da equipe. O Sentinela aparece surtado, escondido, em pânico, com medo do Vácuo e os heróis ajudam Reynolds a se equilibrar. Bendis mantém a amnésia coletiva sobre o herói, mas altera a forma que Jenkins havia finalizado a história, colocando a responsabilidade pelos delírios do personagens nas mãos do Mestre Mental (Jason Wyngarde).

Paul Jenkins do Bendis e Paul Jenkins do pai e da mãe dele!
No meio da tentativa de entender a razão da falta memória coletiva sobre o Sentinela, os Vingadores trazem o próprio Paul Jenkins. Os quadrinhos de Jenkins (dentro da história de Bendis) eram a única fonte de informação sobre o Sentinela e a explicação para isso é que Reynolds havia implantado suas memórias (bloqueadas pelo Mestre Mental) no subconsciente do roteirista, que passou a usá-las como inspiração para suas histórias em quadrinhos. Além de quebrar a quarta parede colocando o criador e a criatura frente a frente, Bendis sinaliza que aquela ideia essencial de super-herói, representada por um personagem tão poderoso como o Sentinela, estava de volta à Marvel, com toda a força que essa ideia tem.
Em arcos posteriores o Sentinela enfrenta seus demônios, como manda o figurino da Jornada do Herói. No título dos Vingadores Sombrios (equipe liderada por Norman Osborn), o personagem passa por várias mortes e renascimentos (literalmente). Ele morre pelas mãos de Morgan le Fey, do Homem Molecular, leva um tiro de sua ex-esposa, até ser dominado pelo Vácuo. Osborn usa o poder do herói/vilão para destruir Asgard (na saga O Cerco). No fim desse arco Reynolds recupera o controle e pede para que alguém o mate (Thor se encarrega da tarefa).
Mais tarde o ciclo de mortes e renascimentos continua e o Dr. Estranho cria um micro universo paralelo, onde Robert Reynolds pode ser o Sentinela e combater o Vácuo todos os dias (em intervalos de 24 horas), mantendo todo esse poder longe da Terra e de seus habitantes. Na fase Legado (de 2018), o sistema falha e mais uma vez o Sentinela tem que enfrentar suas sombras. Dessa vez o herói escolhe abraçar seu lado obscuro para se tornar um ser inteiro. Essa decisão dá a ele poderes ainda mais extraordinários e a última atitude do personagem é abandonar o planeta.
Os paralelos entre a história do Sentinela e da Marvel são inevitáveis. Sua criação (que acontece no momento mais frágil da editora) evoca um passado heroico esquecido, a tentativa de retomar esse passado e a consciência de que seus maiores demônios tinham origem nele mesmo. Na sequência, o reconhecimento e a volta ao time dos grandes heróis pelas mãos de roteiristas como Paul Jenkins e Brian Bendis, que abraçaram o que havia de mais marginal dentro da editora (os Vingadores, os heróis urbanos como Luke Cage e Demolidor) e viraram o jogo com histórias mais adultas (selo MAX). E por fim, depois de muitas quedas e batalhas contra si mesmo, chega ao ápice do poder no momento em que a Marvel fechava o longo arco cinematográfico que expandiu seus negócios e levou suas criações para públicos nunca antes imaginados.
Os últimos 20 anos da Marvel são uma longa jornada heroica e seus personagens refletem essa história de morte e renascimento, e talvez o Sentinela seja o exemplo mais claro dessa volta por cima.
Ou seja, o Sentinela é uma mistura de Triunfo (herói retconado da DC Comics pré-Novos 52) com Homem Animal (também da DC) e boas doses de “O Médico e o Monstro”…
Pra mim, ele funcionou até “O Cerco”. E durou até demais. Mas pelo menos foi bem escrito durante esta fase.